Um apelo dos anarquistas brasileiros

Por CrimethInc.
“Preocupo-me se os brancos vão resistir. Estamos resistindo há 500 anos.”
—Ailton Krenak
Distopia Viva
O cenário é sombrio. Em 19 de agosto de 2019, a fumaça cobre cidades por todo o estado de São Paulo, transformando o dia em noite às 15h. No dia anterior, na Islândia, foi organizado o primeiro funeral, com direito a uma lápide e um minuto de silêncio, para uma geleira declarada morta. A fumaça que envolveu São Paulo é causada por incêndios florestais na Floresta Amazônica, no extremo norte do Brasil; a geleira desapareceu devido ao aumento da temperatura causado pelo acúmulo de dióxido de carbono na atmosfera.
Essas cenas trágicas — quase pitorescas, quase absurdas — poderiam soar cômicas se não fossem reais. São tão extremas que nos lembram cenários fictícios como os descritos no romance ” E a Terra Ainda”, uma distopia ambiental brasileira de Ignácio de Loyloa Brandão. Escrito na década de 1970, durante a ditadura militar no Brasil, o livro descreve um regime ditatorial fictício conhecido como “Civiltar”, que celebra o corte da última árvore da Amazônia com uma declaração jingoísta de que criou “um deserto maior que o do Saara”. Nessa história, todos os rios brasileiros estão mortos; jarros de água de cada um dos rios extintos são exibidos em um museu hidrográfico. Dunas de lata de alumínio e rodovias permanentemente bloqueadas por carcaças de carros abandonados são o pano de fundo de São Paulo. A própria cidade sofre com bolsões repentinos de calor capazes de matar qualquer pessoa desavisada; doenças misteriosas consomem os cidadãos, especialmente os moradores de rua.
O autor afirma ter se inspirado em fatos reais que pareciam absurdos e incomuns na época. Hoje, eles estão se tornando cada vez mais comuns.
Notícias sobre o aumento das queimadas na Amazônia causaram comoção em todo o mundo. As queimadas aumentaram 82% em 2019 em relação ao mesmo período do ano passado no Brasil, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, e novos focos de incêndio ainda estão sendo relatados enquanto escrevemos. As imagens catastróficas de destruição alimentaram a indignação de pessoas em todo o mundo, preocupadas com o futuro da vida na Terra, ao constatarem a importância da floresta amazônica para a regulação do clima e a biodiversidade global. Imagens dos incêndios levaram o presidente francês, Emmanuel Macron, a levar o assunto à cúpula do G7 e a trocar farpas com o presidente Jair Bolsonaro na mídia, depois que a França ofereceu milhões de dólares em fundos para combater incêndios florestais.
Desde o final de 2018, meio bilhão de abelhas foram encontradas mortas em quatro estados brasileiros. A morte desses insetos, essenciais para a fertilização de 75% dos vegetais que consumimos, está ligada ao uso de pesticidas proibidos na Europa, mas permitidos no Brasil. Em agosto de 2019, o tribunal rejeitou as acusações contra um agricultor que usou pesticidas lançados de um avião como arma química contra a comunidade indígena Guyra Kambi’y, no Mato Grosso do Sul, em 2015. No mesmo mês, grupos de agricultores, grileiros [pessoas que falsificam documentos para obter a propriedade de terras], sindicalistas e comerciantes usaram um grupo de Whatsapp para coordenar a queima de fogos no município de Altamira, no Pará, epicentro dos incêndios que consomem a floresta amazônica. Conforme noticiado pela Folha do Progresso, o “dia do fogo” foi organizado por pessoas incentivadas pelas palavras de Jair Bolsonaro: “O objetivo, segundo um dos líderes que falou anonimamente, é mostrar ao presidente que eles querem trabalhar”.
A recente onda de incêndios que liga as políticas do presidente Jair Bolsonaro a ataques contra florestas, camponeses e povos indígenas é a intensificação de um processo tão antigo quanto a colonização das Américas. Enquanto o Partido dos Trabalhadores (PT) ainda estava no poder, muitos projetos foram lançados para expandir e acelerar o crescimento, incluindo a construção da usina de Belo Monte, que deslocou e impactou comunidades indígenas e milhares de outras pessoas que vivem no campo. A aprovação do Código Florestal em 2012 permitiu que fazendeiros avançassem sobre territórios indígenas e reservas naturais com impunidade, ao mesmo tempo em que suspendeu a demarcação de novas terras protegidas.
Tanto governos de esquerda quanto de direita veem a natureza e a vida humana principalmente como recursos para produzir mercadorias e lucro. O governo Bolsonaro, inimigo declarado do povo, das mulheres e dos grupos indígenas, não nos ameaça apenas com a violência física da repressão policial. Ao declarar que não reconhecerá mais nenhuma terra indígena, Bolsonaro está intensificando uma guerra contra os ecossistemas que tornam a vida humana possível — uma guerra que o precede há muito tempo.
Um desastre que dura 500 anos
Durante séculos, lutamos para sobreviver ao maior desastre da nossa era, um desastre que ameaça a sustentabilidade de todos os biomas e comunidades deste planeta. Seu nome é capitalismo — o sistema econômico mais cruel, injusto e destrutivo da história. Essa ameaça não é resultado das forças inevitáveis da natureza. Os humanos a criaram e podem eliminá-la.
No Brasil, testemunhamos em primeira mão como esse sistema explora pessoas, promove genocídios e degrada e polui a terra, a água e o ar. Mesmo que consigamos aboli-lo, ainda teremos que sobreviver às consequências de permitir que ele continue por tanto tempo. A destruição de ecossistemas inteiros, os venenos nos rios e em nossos próprios corpos, as espécies que foram extintas, as geleiras que desapareceram, as florestas que foram derrubadas e pavimentadas — essas consequências permanecerão por muitos anos. No futuro, teremos que sobreviver coletando o que precisamos das ruínas e resíduos que esse sistema deixou em seu rastro. Todo o material que foi arrancado do solo para ser espalhado pela superfície da Terra e despejado nos mares não retornará da noite para o dia às profundezas de onde veio.
Reconhecer isso deve nos orientar em como visualizamos nossas perspectivas revolucionárias. É tolice imaginar que a abolição do capitalismo expandirá as atividades de consumo atualmente disponíveis à burguesia global para toda a população humana; precisamos parar de fantasiar sobre um mundo pós-capitalista regulamentado, com recursos infinitos para gerar o tipo de mercadorias que a propaganda capitalista nos levou a desejar. Em vez disso, teremos que experimentar maneiras de compartilhar a autogestão de nossas vidas em meio à recuperação de nossos biomas, nossos relacionamentos e nossos corpos após séculos de agressão e exploração — organizando a vida em regiões que se tornaram hostis a ela.
A forma como organizamos nossa resistência hoje deve ser baseada no fato de que nossos experimentos revolucionários não ocorrerão em um mundo de paz, estabilidade e equilíbrio. Lutaremos para sobreviver em meio às consequências de séculos de poluição e degradação ambiental. O melhor cenário para o futuro será semelhante à situação em Kobane em 2015: uma revolução vitoriosa em uma cidade bombardeada e cheia de minas.
Ninguém precisa imaginar um apocalipse quando o pior das distopias já faz parte da realidade. Nas cidades de Mariana e Brumadinho, no estado de Minas Gerais, barragens administradas pelas mineradoras Samarco e Vale romperam devido à falta de manutenção e ao descaso com a vida humana, a vida selvagem e o meio ambiente. Em Mariana, 19 pessoas morreram em consequência de um acidente em 2015; em Brumadinho, pelo menos 248 pessoas morreram e dezenas ainda estão desaparecidas após um desastre em janeiro de 2019. Em busca de lucro, essas empresas e seus gestores infligiram um dos piores desastres ambientais do país, afetando milhares de pessoas, desde parentes dos mortos até comunidades indígenas e rurais que dependem dos rios devastados pela lama tóxica retida nas barragens.
Tais exemplos facilitam a compreensão de que a pior tragédia não é o fim da ordem capitalista, mas sim o fato de ela existir. Como disse Buenaventura Durruti em uma entrevista durante a Guerra Civil Espanhola:
Nós, os trabalhadores, podemos construir outros para ocupar o seu lugar, e melhores! Não temos o menor medo de ruínas. Vamos herdar a Terra; não há a menor dúvida sobre isso. A burguesia pode explodir e arruinar o seu próprio mundo antes que ele deixe o palco da história. Trazemos um novo mundo aqui, em nossos corações. Esse mundo está crescendo neste minuto.
Então, o que está queimando a Amazônia?
Há um consenso entre pesquisadores científicos, instituições governamentais, movimentos sociais e populações rurais e urbanas sobre os impactos e riscos do aquecimento global e da crescente industrialização e urbanização. Algumas dessas consequências estão prestes a se tornar irreversíveis. O próprio desmatamento da Amazônia pode se tornar irreparável se atingir 40% de sua área total.
Nunca funcionou exigir que os governos resolvam esses problemas para nós — e nunca funcionará. Isso é especialmente tolo quando falamos dos desastres ambientais causados por suas próprias políticas. A grilagem de terras e o desmatamento da Amazônia estão inextricavelmente interligados às organizações criminosas que contrabandeiam e matam no campo. Cerca de 90% da madeira extraída é contrabando, sustentado por um vasto aparato de capitalismo ilegal que envolve milícias armadas e o próprio Estado.
Líderes populistas como Bolsonaro buscam se beneficiar da catástrofe ecológica em curso, ao mesmo tempo em que negam que ela esteja ocorrendo. Por um lado, afirmam que não há necessidade de medidas para conter o aquecimento global — ao lado de Trump, Bolsonaro foi o único líder que ameaçou abandonar o Acordo de Paris, alegando que o aquecimento global é uma “fábula para ambientalistas”. Isso ajuda a mobilizar a base de extrema direita, que admira e celebra a desonestidade absoluta como demonstração de poder político. Por outro lado, à medida que as consequências do caos climático e dos desequilíbrios ambientais se tornam fatos óbvios e inegáveis, esses líderes aproveitarão oportunisticamente crises ambientais, escassez de produtos, migrações de refugiados e desastres climáticos, como furacões, como pretextos para acelerar a implementação de medidas cada vez mais autoritárias nas áreas de saúde, transporte e segurança. Usar meios autoritários e militarizados para determinar quem pode ter acesso aos recursos necessários para sobreviver em um contexto de escassez generalizada é o que muitos teóricos chamam de ecofascismo.
A intervenção de Estados estrangeiros na floresta amazônica, em nome de seus próprios interesses econômicos, é simplesmente a continuação do colonialismo iniciado em 1492. Nenhum governo resolverá o problema dos incêndios e do desmatamento. Na melhor das hipóteses, poderá abrandar o impacto da exploração que sempre praticou. O capitalismo neoliberal exige crescimento sem fim, exigindo a transformação das florestas e do solo em bens de consumo competitivos no mercado global.
Então, o que está queimando a Amazônia — e o planeta inteiro? A resposta é clara: a busca por terras, lucro (legal ou não) e propriedade privada. Nada disso será mudado por nenhum governo eleito ou imposto. A única perspectiva verdadeiramente ambiental é uma perspectiva revolucionária que busque o fim do capitalismo e do próprio Estado.
Exercitando nossa capacidade de imaginar
As imagens distópicas de ” E a Terra Ainda” e do romance “1984” , de George Orwell , foram concebidas como alertas: projeções exageradas do pior que pode acontecer se não conseguirmos mudar o curso da história. Hoje, com câmeras em cada esquina e nossas próprias TVs e celulares nos vigiando, é como se esses romances distópicos estivessem sendo usados como um manual para governos e corporações transformarem nossos piores pesadelos em realidade.
Distopias são avisos; mas utopias, por definição, representam lugares que não existem. Precisamos de outros lugares, lugares que sejam possíveis. Precisamos ser capazes de imaginar um mundo diferente — e imaginar a nós mesmos, nossos desejos e nossos relacionamentos sendo diferentes também.
Devemos usar a criatividade que nos permite imaginar apocalipses zumbis e outras calamidades literárias ou cinematográficas para imaginar uma realidade além do capitalismo agora mesmo e começar a construí-la. Hoje, à medida que a realidade supera a ficção, nossas atividades são amplamente caracterizadas pela descrença e passividade. Mas não se pode ser neutro em um trem em movimento — especialmente em um que acelera nos trilhos rumo ao abismo. Cruzar os braços é cumplicidade. Da mesma forma, agir individualmente é insuficiente, pois mantém a lógica que nos trouxe até aqui.
Precisamos redescobrir referências revolucionárias para uma vida coletiva auto-organizada e igualitária. Precisamos compartilhar exemplos de sociedades reais que resistiram ao Estado e ao capitalismo, como os experimentos anarquistas durante as Revoluções Russa e Ucraniana de 1917 e a Revolução Espanhola de 1936. Devemos lembrar, também, que todas elas foram, em última análise, traídas e esmagadas pelo Partido Bolchevique e pela ditadura stalinista que o seguiu, ou com a conivência deles, que levaram a cabo uma industrialização sem precedentes e o deslocamento em massa de povos agrários. Isso ilustra por que é tão importante desenvolver uma forma de imaginar que não se limite a replicar as visões do industrialismo capitalista.
Também podemos nos voltar para exemplos contemporâneos, como a Revolta Zapatista no México desde 1994 e a revolução em curso em Rojava, no norte da Síria. Mas, além dos exemplos oferecidos por anarquistas ou pessoas influenciadas por princípios anarquistas, devemos aprender com as muitas nações indígenas ao nosso redor: Guaranis, Mundurukus, Tapajós, Krenaks e muitas outras que resistiram incessantemente à expansão colonial europeia e capitalista por cinco séculos. Todos eles são exemplos vivos com os quais os anarquistas podem aprender sobre a vida, a organização e a resistência sem e contra o Estado.
Se existe alguma base fundamental para a solidariedade em resposta ao ataque à base de toda a vida na Amazônia, é o potencial de construirmos conexões entre os movimentos sociais, os pobres e excluídos do mundo e os povos indígenas e camponeses de toda a América Latina. Para deter o desmatamento em curso na Amazônia e inúmeras formas semelhantes de destruição que estão ocorrendo em todo o planeta, precisamos nutrir movimentos populares que rejeitam a gestão neoliberal dos recursos do solo, das florestas, das águas e das pessoas.
Por uma solidariedade entre todos os povos e classes exploradas, não entre o paternalismo e o colonialismo de governos! A única maneira de enfrentar a crise ambiental e as mudanças climáticas globais é abolir o capitalismo!
Outro fim do mundo é possível!
Título: O que está queimando a Amazônia?
Subtítulo: Um apelo dos anarquistas brasileiros
Autor: CrimethInc.
Tópicos: Brasil , Ecologia , meio ambiente , fascismo , Resistência
Data: 24 de setembro de 2019
Fonte: Recuperado em 17 de junho de 2021 de crimethinc.com