Não precisamos justificar a necessidade de uma reflexão feminista entre anarquistas, sabemos que por princípios estará claro para todas. É possível ser uma anarquista sem ser feminista? Essa pergunta já foi feita várias vezes, e não nos parece necessário buscar uma resposta em Proudhon, Bakunin, Louise Michel e Emma Goldman. Se ocorre que podemos ser pessoas anarquistas sem ser feministas, ou melhor, praticar a anarquia sem ter presente que a opressão sexista ultrapassa todo espaço público e privada, que o pessoal é sempre político e que não nascemos para ser disciplinadas por nossas genitálias. Não concentramos nossa atenção nos princípios que por ser óbvio muitas vezes não nos incomodamos em levar em prática, mas que seria sua única razão de ser. 

Observamos como urgente em nossos espaços pessoais e coletivos, abertos e fechados, a prática não palpável de uma igualdade entre  homens e mulheres, se não o que entendemos como essencial no sentido que damos às nossas ações: a desnaturação de nossos identidades de fêmeas, machos ou pessoas homoafetivas. Não há essencialismos, não procuramos feminizar o mundo sabendo que isso é um construto, qualquer desvio, degeneração nas práticas que entendemos como fuga, rebelião e insubordinação, que vão desde o esquecimento de todos os privilégios e obrigação associada ao nosso sexo, até necessariamente criar, imaginar modos de vida utópicas e atípicas, isto é, múltiplas.

Entendendo que não se trata de detalhes simples, não permitindo que se entenda que as práticas sexistas são isoladas e visíveis, enfatizamos a necessidade de fazer política onde a própria vida prática, que não está apenas lá fora, mas também dentro de nossos corpos, nossas mentes, e entre nós e nossa individualidade e coletivamente. O que nossos escritos, publicações e até patchs e bandeiras dizem sobre a igualdade entre homens e mulheres contradizem as piadas sexistas, cavalheirismo injustificado e horizontalidade masculina que pretendemos como uma bandeira da luta contra um inimigo que reconhecemos em outro campo, lá fora, uma horizontalidade que se torna diagonal, vertical ou rotativa toda vez que deixamos a opressão sexista se infiltrar em nossos espaços, permitindo que nossas companheiras silenciem sua opinião, que nossas mães vivam sob heteronormalidade, que nossas filhas e filhos aprendem a se comportar como mulheres e homens, como provavelmente aprendemos. Chega um momento em que que o discurso da igualdade, tantas vezes declarado, é esvaziado de todo significado e nos leva a perguntar a nós mesmas. É a igualdade que estamos buscando? Homens e mulheres com os mesmos direitos e possibilidades? Isso seria suficiente?

Confirmamos a ação permanente de um regulamento que prescreve nossas ações do mais básico, classificando-nos, moldando-nos, decorando-nos com azul e rosa: uma heteronormatividade de acordo com o qual se é uma pessoa homem ou pessoa mulher, e cada pessoa na sua, e nada de perninhas ou rabinhos suínos, menos ainda corpos indefiníveis, incompreensíveis e ingovernáveis. Não é igualdade o que buscamos é o desaparecimento absoluto dessa heteronormatividade e tudo o que isso implica em nossas vidas, corpos e afetos. Não temos como objetivo final a igualdade de salários entre homens e mulheres ou colocação de emprego em termos iguais, pois não estamos interessadas ​​em alcançar igualdade de condições de exploração (embora não seja por isso que seremos passivas diante desses pontos de icebergs) Há quem diga: «Como é chato um mundo sem feminilidade ou masculinidade! O que vai acontecer com poesia, com vestidos e com os bigodes? Seremos todos iguais, não haverá contrastes? Sim isso haverá, será a celebração de contrastes, diferenças e misturas, os desenvolvimentos ainda não imaginados. Os vestidos serão usados ​​por quem quiser e os bigodes para todas as que quiserem. Pela poesia não há que se preocupar, porque há tanta bajulação misógina que não sentiremos falta das poesias que bajulam pessoas marinheiras que deixavam uma mulher em cada porto, desse tipo de material não nos fará nenhuma falta. Não gostamos quando calam a boca da mulher, nós gostamos quando há gritos, discussões e comemorações: essas comemorações podemos realizar agora mesmo!

Coletivo Anarcofeminista AFEM (#53, maio/junho 2008)

(Este texto é parte da exposição do Coletivo Anarcofeminista AFEM no forum “Anarcofeminismo e Luta de Classes”, realizado no dia 08 de março de 2008 na Okupa AKI, Santiago do Chile. Para o documento completo, consultar http://columnegra.cl.nu)

Para uma crítica anarquista da feminilidade
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