Estamos na cidade de São Paulo, começo do mês de julho no ano 1917, uma cidade de aproximadamente 480 mil habitantes.

As pessoas trabalhadoras estavam inquietas e uma agitação contagiante era percetível no ar. Havia uma insatisfação presente pela escassez de víveres causada pela Primeira Grande Guerra Mundial, uma carestia enorme ampliada pelos baixos salários pagos pela patronal, principalmente para as mulheres e crianças trabalhadoras. Sim, as mulheres e as crianças eram a maioria das pessoas trabalhadoras exploradas e oprimidas, extremamente descartáveis e recebiam muito menos que os homens, mesmo trabalhando jornadas de trabalho acima das 12 horas diárias!

A patronal industrial, cria das oligarquias cafeicultoras, de forma literal, já que muitas das pessoas dessa patronal industrial eram os filhos dos barões de café que apostavam numa diversificação de mercado, motivados pela necessidade de substituição de produtos manufaturados simples que não mais chegavam em nossas terras tropicais por conta da grande guerra na Europa. Uma industrialização tardia, de fábricas que usavam uma mão de obra de pessoas trabalhadoras, na sua maioria oriundas dessa Europa em guerras e doenças. Uma mão de obra muito barata que vivia em péssimas condições sanitárias, abandonadas a própria sorte.

No Brasil, nem 30 anos haviam passado de uma abolição da escravatura, a maioria das pessoas ex-escravas foram abandonadas a própria sorte, descartadas após centenas de anos de extrema exploração. Um desprezo das elites cafeicultoras era muito visível contra essas pessoas ex-escravas. Embora muitas dessas pessoas possuíssem capacidade para o trabalho operário, muitas não foram absorvidas pela industrialização nascente. As primeiras levas de imigrantes europeus vieram para substituir essas pessoas negras das grandes fazendas de café. As elites cafeicultoras, na sua maioria, conservadoras, trataram esses imigrantes da mesma forma que sua antiga mão de obra escrava, na base dos maus tratos. Rapidamente, uma parte dessa mão de obra imigrante foge das fazendas e vão para as maiores cidades brasileiras, formarem conjuntamento com as pessoas negras, um exercito de pessoas trabalhadoras nessa industrialização tardia brasileira.

Logo essas novas elites industriais e comerciais se organizam em associações e grupos de interesse, estruturas sindicais patronais, muitas das quais existem até hoje! O poder econômico gera poder politico e esse amplia o poder econômico, como uma ciranda onde reciprocadamente os poderosos se apoiam, se fortalecem. Nestas condições, a politica brasileira era fruto da riqueza e só aquelas pessoas que possuíam alguma riqueza poderia votar, e se muita riqueza, ser votada.

Neste ambiente oligárquico, de um determinado grupo no poder, no controle, não havia espaço para a população pobre, abandonada em seu bairros marginais, suburbanos.

Essa população proibida de se organizar, se organiza!

Pouca escolha possuíam que sem nenhuma amparo do Estado, busca em si mesma, a solidariedade negada pela estrutura governamental. Essa solidariedade culmina na formação de sindicatos de pessoas trabalhadoras, organizações clandestinas que uniam as pessoas trabalhadoras em torna do bem estar e liberdade, aspirações simples, libertárias! Fundam Escolas Modernas para as crianças e para as pessoas analfabetas, criam fundos de amparo as pessoas doentes, as pessoas idosas e ajuda as pessoas viúvas. Educavam a si mesmas contra a ignorância e repressão. Produziam jornais e os distribuíam nos bairros operários e nas portas de fábricas. Lia-se A Plebe, A Lanterna, A Voz do Trabalhador, A Batalha e tantos outros jornais, e vários em idiomas como espanhol e italiano.

Repressão presente nesses bairros, feita pelas forças publicas, policiais que invadiam os escritórios das associações sindicais, consideradas criminosas, as diretorias e suas associadas eram presas e torturadas, muitas sendo extraditadas para seus países de origem. Outras eram enviadas aos campos de concentração e trabalhos forçados em regiões distantes da civilização como a Colônia Militar do Oiapoque, Clevelândia do Norte, no Amapá, mais conhecida para muitas que sobreviveram de “Inferno Verde”, onde outras tantas companheiras não sobreviveriam seja pela malária, seja pela tortura, seja pelos trabalhos forçados.

Aqueles jornais que víamos nas portas das fábricas, que passavam de mão em mão, muitas vezes tinham seus espaços invadidos, seus jornalistas presos e os equipamentos quebrados, no que chamavam “empastelamento” do jornal.

Mesmo assim e felizmente, a repressão não foi o suficiente para remover a convicção de luta e resistência da população trabalhadora. Organizada e combativa, fazem greves, fazem piquetes, fazem paralisações, não só na defesa de interesses de seus ofícios (trabalhos), como de forma solidária e de profunda consciência de irmandade entre pessoas oprimidas e exploradas, agiam também quando eram convocadas a apoiar lutas de outros ramos de trabalho.

É esse o ambiente nesse começo de julho de 1917. Iniciada paralisações nas duas fábricas têxteis do Cotonifício Rodolfo Crespi, logo por uma capilaridade solidária entre trabalhadoras, uma mobilização de mais de 70 mil pessoas trabalhadoras estão nas ruas, por reivindicações básicas e legitimas. De forma auto-organizada, formam Comitês de Defesa Proletária (de quem trabalha, de quem produz riquezas que não usufruem, de quem sofre e mal recebe para sobreviver!) e apresentam:

-Que sejam postas em liberdade todas as pessoas detidas por motivo de greve;

-Que seja respeitado do modo mais absoluto o direito de associação para as pessoas trabalhadoras;

-Que nenhuma pessoa operária seja dispensado por haver participado ativa e ostensivamente no movimento grevista;

-Que seja abolida de fato a exploração do trabalho de menores de 14 anos nas fábricas, oficinas etc.;

-Que as pessoas trabalhadoras com menos de 18 anos não sejam ocupados em trabalhos noturnos;

-Que seja abolido o trabalho noturno das mulheres;

-Aumento de 35% nos salários inferiores a $5000 e de 25% para os mais elevados;

-Que o pagamento dos salários seja efetuado pontualmente, cada 15 dias, e, o mais tardar, 5 dias após o vencimento;

-Que seja garantido as pessoas operárias trabalho permanente;

-Jornada de oito horas e semana inglesa;

– Aumento de 50% em todo o trabalho extraordinário.

E como sempre, a primeira ação dos grupos poderosos é o uso da violência, deflagrando combates nos bairros das pessoas trabalhadoras, assassinando pessoas. Uma delas se torna um simbolo da luta, em 9 de julho, uma carga de cavalaria foi lançada contra as pessoas operárias que protestavam na porta da fábrica Mariângela, no Brás e resultou na morte da pessoa anarquista José Martinez. Seu funeral atraiu uma multidão que atravessou a cidade acompanhando o corpo até o cemitério do Araçá onde foi sepultado. Hoje, apagada da história, o jazigo dessa pessoa mártir não mais existe!

De São Paulo, como um rastilho de pólvora, logo as populações trabalhadoras de Jundiaí, Santos, Campinas, Araraquara, Ribeirão Preto, Rio de Janeiro, Porto Alegre e muitas outras aderem a esse grito por libertação e bem estar.

As elites derrotadas por essa onda grevista, se vingariam logo depois, reprimindo, caçando, matando todas as pessoas envolvidas nesse episódio.

Esse episódio foi espontâneo e autogestionário, de base anarquista, sem lideranças e nem partidos vanguardistas. Mesmo assim, a justiça vingativa das elites buscaram atribuir ao jornalista anarquista Edgard Leuenroth, a responsabilidade desse evento impar na linha temporal brasileira, um episódio relegado a segundo plano pelo o teor altamente revolucionário que aterroriza todos os grupos políticos de todos os espectros, direita e esquerda, acomodados na ciranda de poder em que se encastelaram e de onde só sairão expulsos em ação direta pela população cansada de ser explorada e oprimida.

Na luta somos dignas e livres!

A grande greve de 1917
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