(Por Maria Correia)
O conceito é simples: uma vida sem imposições, sem explorações, sem opressões.
Sistematizada por pessoas anarquistas no século XIX, imaginam uma sociedade assim. Não haveria mais estado e as pessoas se relacionariam de forma direta, a criar e dividir produtos, experiências e vivências entre si. Não haveria motivos para qualquer forma de monopólio, e o conhecimento foi e é um resultado coletivo. As nações deixariam de existir, e todas as relações humanas teriam o mesmo grau de importância. “Se uma pessoa é oprimida, explorada, todas são; emancipar todas as pessoas é uma necessidade muito urgente” frase que ecoa nos documentos da união anarquista Fenikso Nigra (Campinas/SP). Um discurso bonito, mas impossível. De poucas práticas e experiências, a anarquia nunca veio a ser um fato real.
Será?
Atualmente encontramos espaços virtuais onde se compartilham milhões em informações de forma voluntária, nos formatos de wikis. Existem plataformas abertas e colaborativas para atuação cibernética, o ciberativismo que movimentam campanhas emancipatórias por todo o mundo. De forma direta, bandeiras de 250 anos atrás se mantém atuais, como a libertação de animais, a luta feminista e o fim do capitalismo e do autoritarismo político (de direita e esquerda).
Um mundo de práticas, de referências anarquistas é possível?
Sim e não, depende da atitude e engajamento de cada pessoa.
O Estado se mantém um agente de poder muito presente, que intimida e reprime que não anda na linha que dita. O conceito de seu fim não é uma novidade, muito antes da revolução industrial, em todo mundo ocorreram comunidades de livre associação e de bases solidárias e horizontais. Boa parte por exemplo de nossas pessoas nativas viviam dessa forma até a invasão europeia.
Na Europa, a temporalidade da revolução industrial indicou a importância da organização das pessoas trabalhadoras para a abolição da exploração e da opressão que sofriam. Desse processo, alguns conceitos se formaram, do entendimento de que o fim das misérias seriam fruto das próprias pessoas oprimidas e exploradas, levadas a uma organização direta, sem Estado, sem partidos, sem chefias ou equivalentes. Essa construção é um processo de inspiração coletiva e da mais ampla participação das pessoas oprimidas e exploradas, que assumem a responsa da ação e de suas consequências. Não há uma receita de bolo, mas as referências anárquicas para esse processo: apoio mutuo, horizontalidade política, federalismo anarquista (cada base é a parte essencial da federação anarquista).
Com ou sem diferenças, as pessoas anarquistas praticaram e praticam suas ideias. Algumas foram para o movimento das trabalhadoras, influenciando as pessoas para a lutas de questões do trabalho. Outras optaram por sociedades perfeitas (assim como as ecovilas atuais), em lugares distantes como no Brasil, como foi a Colônia Cecilia e Guararema. Iguais a elas ocorreram em todo o mundo.
As variações da anarquia
A concepção da anarquia, que é contra o poder não tem como ter uma liderança ou uma idealização unificada, engessada. Nesse início de século, encontramos uma graduação que consta o anarcocomunismo ao anarcoindividualismo, tão presentes como o anarcossindicalismo e anarkafeminisma.
Leon Tolstoi, escritor russo defendia uma resistência não violenta, desobediência civil contra o Estado; no que Errico Malatesta receitava um greve geral e a expropriação de propriedades. Para a pessoa anarquista Sergei Nietchaiev o lance era partir para o confronto, conforme seu escrito Catecismo Revolucionário, onde conclamava todas a cometer todas mortes necessárias, a expropriar as riquezas dos grupos opressores e exploradores para fins da luta de emancipação.
Sobre essa influência, muitas bombas foram usadas contra a nobreza, grupos políticos e da polícia (força de repressão) na Europa. Destacou-se Jean Ravachol, um francês que detonou dinamite nos lares de juízes e que o levou a guilhotina, mas suas simpatizantes mataram várias lideranças. Depois de 1894, pessoas consideradas anarquistas mataram dois primeiros-ministros espanhóis, o rei Humberto da Itália, a imperatriz Elizabeth da Áustria, o presidente francês Sadi Carnot. Em 1901, o presidente dos EUA, William McKinley foi assassinado pela pessoa anarquista Leon Czolgosz .
Leis antianarquistas foram criadas pelos Estados a fim de combater a anarquia; a polícia as tratava como criminosas comuns – reforçando a noção de que anarquia é sinônimo de caos, bagunça, baderna. Muitas foram acusadas injustamente. Nicola Sacco e Bartolomeu Vanzetti foram acusadas de matar duas pessoas funcionárias de uma fábrica que transportavam o pagamento das empregadas, na década de 20 do século passado. Mesmo sem provas, Sacco e Vanzetti acabaram na cadeira elétrica. Muito se falou na época que o veredito seria diferente não fossem anarquistas. Essa tragédia inspirou o filme Sacco e Vanzetti, inúmeros livros e músicas.
As perseguições contra as pessoas e movimento anarquista sempre ocorreu, principalmente quando o movimento tende a crescer e influenciar as relações humanas, de forma a romper com tudo que seja opressor e explorador, um pesadelo para os grupos poderosos que procuram se manter no controle de umas sobre as outras.
A anarquia esteve presente na industrialização tardia do Brasil com os anarcossindicatos, no maio de 1968, no movimento punk da década de 80 do século passado, nos primeiros levantes black block da Ação Global dos Povos (em 1998), na Acampadas de 2011, nos enfrentamentos anticopa em 2014, no Brasil entre tantos outros.
Anarquia na rede
Com a internet, os fenômenos anarquistas se amplificam. A internet promoveu uma transformação muito acelerada entre a transmissão e espectador de televisão. A passividade ocasionada pela TV, foi desafiada pela internet, mas que já redireciona as pessoas a voltarem a sua passividade habitual, mesmo com as novas possibilidades de ação. A web inaugurou a era do conhecimento livre e compartilhado. Começado nos anos 80, Richard Stallman, programador, iniciou um sistema operacional de código aberto chamado de GNU (seria algo como “GNU não é Unix”), em alusão a um sistema operacional Unix. Em sua proposta, qualquer pessoa corrige e melhora o trabalho de outras. Em 1991, surgiu a variação mais famosa do GNU: Linux, um sistema aberto alternativo à hegemonia do Windows, inaugura uma onda dos produtos feitos por voluntários e distribuídos de forma gratuita. Marca-se o começo do que seria conhecido como movimento software livre. Esse método é usado até em videogames atualmente. Em jogos mods (“modification”), a pessoa jogadora tem acesso ao código- fonte e poderá modificar tudo no jogo, de cenário aos avatares.
Como já citado, o conceito wiki, de livre colaboração foi um agente de grande avanço para as informações que não só eram compartilhadas, mas sofrem alterações conforme são atualizadas por todas as pessoas interessadas, de forma aberta, de forte influência dos princípios livres que a anarquia indica.
Mas nesse processo também há empresas como o buscador Google e a rede social Facebook, que se baseiam no comportamento de gente do mundo inteiro, também viraram motivo de análise. As informações inseridas, as definições de perfil e toda a gama de preferências de cada pessoa se tornaram nesse processo, uma mercadoria, um efeito colateral do processo de suposta socialização na web.
A facilidade de circulação de materiais tem sido mapeada e restringida por questões de patentes e direitos autorais, levando a dificuldade de acesso a determinados materiais, por exemplo de teor científico. No entanto, através de um organização não-governamental e sem fins lucrativos, conjuga propriedade intelectual (copyright) de forma facilitada, a Creative Commons. De fato, uma autora continua tendo alguns direitos sobre sua obra, mas não todos; e o público se beneficia com mais obras disponíveis.Milhões de materiais estão disponíveis para todas de forma direta. Ainda há o conceito de Copyleft, que indica o uso da fonte desde que seja citada e para fins não comerciais. A anarquia aqui presente na forma do compartilhamento de informações e de todo material produzido e reproduzido, como fruto social, coletivo de todas.
Anarquia presente?
Podemos identificar atualmente algumas ações, propostas e ações como parte de concepções anárquicas. Mas não significa que sem uma prática, a construção e envolvimento das pessoas, a anarquia acontecerá. O Estado tem se tornado um agenciador das grandes multinacionais, das grandes corporações e mantido o controle através das forças de repressão.
A anarquia acontece na medida que se organiza, que envolve cada pessoa a interagir de forma direta, não impositiva, sem oprimir, sem explorar e sem ser oprimida e explorada por outra pessoa. O papel do Estado é tão somente obstruir de forma aberta a construção de relações sociais que não pode controlar.
Nesse processo, a união entre as pessoas é a chave e a base de uma transformação inerente por uma sociedade mais justa e livre. Unir as exploradas e oprimidas, é a chave da mudança.
Anarquismo na prática
Comuna de Paris
A França mantinha uma guerra onerosa contra a Prússia, pessoas revolucionárias aproveitaram para instaurar um governo popular em Paris em março de 1871. Federações de bairros foram organizadas, de inspiração em Proudhon, aboliram o trabalho noturno, aumentaram salários, perdoaram dívidas, acabaram com o ensino religioso nas escolas, instituíram a educação gratuita, aboliram o alistamento militar e as nacionalidades. A situação não durou por muito tempo pelos ataques das forças alemãs e de tropas francesas do presidente Louis Thiers. Muito sangue foi derramado, as pessoas revoltosas baixaram as armas por fim. Com dois meses de duração, assombrou e inspirou resto do mundo.
A Confederação Anarquista Ucraniana
Mais conhecida simplesmente como Nabat (Набат), foi uma organização anarquista que ganhou destaque na Ucrânia durante os anos 1918 até 1920. A área onde teve a maior influência é muitas vezes referida como o Território Livre, onde a Nabat tinha ramificações em todas as grandes cidades do sul da Ucrânia. “Nabat” é uma palavra russa /ucraniana (tocsin), significando tambor de alarme. O grupo publicava um jornal com o mesmo nome. Agiu conjuntamente com o Exército Insurgente Makhnovista, organizando a ocupação das fábricas e dos campos, de forma autogestionária em princípios anarquistas. Parte de sua militância foi presa e assassinada por agentes da Tcheka, polícia política secreta que posteriormente se tornará a KGB.
Exército Insurgente Makhnovista
Famoso grupo de guerrilha tendo como orientação a pessoa anarquista camponesa, Nestor Makhno, que começou as operações no sudoeste da Ucrânia contra o regime de Hetmanate (governo fantoche nas mãos da Alemanha) em julho de 1918. Em setembro, Makhno formou o Exército Insurgente Revolucionário da Ucrânia (também conhecido como Exército Negro) com armas e equipamentos obtidos das expulsas forças austro-germânicas. Makhno lutou contra o Exército Branco do general Denikin até que este se retirou em fins de 1919.
Depois disso, o Exército Insurgente se negou a submeter-se ao comando central de Moscou (Lenin e Trotsky). O Partido Bolchevique então convocou uma assembléia de pessoas oficiais militares na qual foram convidadas todas as coordenações militares makhnovistas. Estas, ao comparecerem foram presas e mortas no que se seguiu uma ofensiva bolchevique contra Gulai-Polé (região de ação do movimento guerrilheiro) vencida em agosto de 1921. Makhno conseguiu escapar para a Romênia e posteriormente para a França onde se refugiou.
Greve Geral de 1917
Essa greve da indústria e do comércio do Brasil, ocorrida em julho de 1917 em São Paulo e correu por todo o país, durante a Primeira Guerra Mundial, promovida por organizações operárias de inspiração anarquista aliada à imprensa livre anarquista. Essa mobilização de pessoas trabalhadoras foi uma das mais abrangentes e longas da história do Brasil. Terminada com um amplo reajuste salarial para todas os ramos de produção, uma grande vitória para as organizações trabalhadoras. Mas logo em seguida segue um aumento repressivo e perseguições contra essas organizações. Esse episódio continua um dos mais relevantes para a organização livre das pessoas trabalhadoras.
Barcelona
A baderna da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), anarquistas tomaram partes da cidade e botaram em prática seus conceitos e metodologias. As mulheres pegaram em armas na luta contra os falangistas/fascistas/autoritárias e as tropas do general Francisco Franco. Todas as riquezas forma confiscadas e coletivizadas, igrejas se tornaram hospitais e escolas e instalaram conselhos de operários na base da autogestão. O anarcossindicalismo se fortaleceu desde 1910, quando a Confederação Nacional do Trabalho (CNT) começou a mobilizar as pessoas trabalhadoras em todos os níveis: educação, assistência social e moradia. Uma organização a partir da base mostrou que é possível derrotar um exército e fazer uma revolução de emancipação anárquica. Os avanços iniciados não se mantiveram por muito tempo. Em 1937, as pessoas anarquistas foram reprimidas pela Frente Popular, guiada pelas pessoas comunistas a soldo de Stálin e levadas a capitulação tempos depois.