Há onze anos atrás, quando eu estava em escola de ensino médio de uma cidade pequena de Illinois, eu nunca tinha ouvido falar da palavra “anarquismo” – de forma alguma. O mais perto dela que eu havia chegado era descobrir que anarquia significava “caos”. Quanto a socialismo e comunismo, minhas aulas de história de alguma forma passavam a mensagem de que não havia diferença entre eles e o fascismo, uma palavra que trazia à mente Hitler, campos de concentração e todos os tipos de coisas horríveis que nunca aconteceram em países livres como o nosso. Eu estava sutilmente sendo ensinada a engolir a insipidez da tradicional política estadunidense: moderação, cessão, ficar em cima do muro, idolatrar Chuck Percy. Eu aprendi bem a lição: levei anos para reconhecer a confusão e a distorção que moldaram minha “educação” inteira. A história do homem (branco) queria exatamente isso; como mulher, eu estava relegada a uma existência vicária. Como anarquista, eu não tinha nenhuma existência. Um pedaço inteiro do passado (e, portanto, possibilidades para o futuro) havia sido escondido de mim. Somente recentemente eu descobri que muitos dos meus impulsos e inclinações políticas desconectadas compartilhavam uma perspectiva em comum – ou seja, a tradição anarquista ou libertária de pensamento. Eu estava me sentindo como se de repente tivesse começado a enxergar vermelho depois de anos de cinzas daltônicos.
Emma Goldman me forneceu minha primeira definição de anarquismo:
Anarquismo, então, na verdade significa a libertação da mente humana do domínio da religião; a libertação do corpo humano do domínio da propriedade; libertação dos grilhões e restrições do governo. Anarquismo significa uma ordem social baseada no agrupamento livre de indivíduos para o propósito de produzir riqueza social real, uma ordem que irá garantir a cada ser humano acesso livre à terra e completo gozo das necessidades da vida, de acordo com os desejos, gostos e inclinações do indivíduo.1
Em breve, eu comecei a fazer conexões mentais entre o anarquismo e o feminismo radical. Se tornou muito importante para mim escrever algumas dessas percepções nessa área como forma de comunicar a outras e outros a excitação que eu senti quanto ao anarcafeminismo. Parece crucial que compartilhemos nossas visões entre nós para quebrar algumas das barreiras que o mal entendimento e o divisionismo levantam entre nós. Apesar de eu me chamar de anarcafeminista, esta definição pode facilmente incluir socialismo, comunismo, feminismo cultural, separatismo lesbiano, ou qualquer um dentre uma dúzia de outros rótulos políticos.
Como Su Negrin escreve: “Nenhum guarda-chuva político pode cobrir todas minhas necessidades”.2 Nós podemos ter mais em comum do que achamos que temos. Enquanto estou aqui escrevendo sobre minhas próprias reações e percepções, não vejo nem minha vida ou meus pensamentos como separados daqueles de outras mulheres. De fato, uma de minhas convicções mais fortes em relação ao movimento feminista é que nós realmente compartilhamos uma incrível comunalidade de visão. Minha própria participação nesta visão é não oferecer declarações definitivas ou respostas rígidas, mas sim possibilidades e conexões mutáveis, as quais eu espero que ricocheteiem ao redor e entre nós e contribuam para um processo contínuo de crescimento individual e coletivo e de evolução/revolução.
O que anarquismo realmente significa?
O anarquismo foi demonizado e mal interpretado por tanto tempo que talvez a coisa mais importante para começar seja uma explicação do que ele é e não é. Provavelmente, o estereótipo mais predominante do anarquista é o de um homem de aparência malévola que esconde uma bomba acessa por baixo de uma capa preta, pronto para destruir ou assassinar tudo e todo mundo em seu caminho. Esta imagem provoca medo e repulsa na maioria das pessoas, independentemente de sua política; consequentemente, o anarquismo é descartado como feio, violento e extremo. Outro erro é o de anarquistas como idealistas pouco práticos, que lidam com abstrações utópica e inúteis e fora do contato com a realidade concreta. O resultado: o anarquismo é mais uma vez dispensado, desta vez como um “sonho impossível”.
Nenhuma dessas imagens é correta (apesar de terem havido tanto assassinos quanto idealistas anarquistas – assim como em muitos movimentos políticos, à esquerda e à direita). O que é correto depende, é claro, do quadro de referência da pessoa. Há diferentes tipos de anarquistas, assim como há diferentes tipos de socialistas. Aqui, vou falar sobre o anarquismo comunista, o qual vejo como virtualmente idêntico ao socialismo libertário (ou não autoritário). Rótulos podem ser terrivelmente confusos, então, na esperança de clarear o termo, definirei anarquismo usando três grandes princípios (cada um dos quais acredito estar relacionado a uma análise feminista radical da sociedade – mais sobre isso mais tarde):
(1) Crença na abolição da autoridade, da hierarquia, do governo.
Anarquistas clamam pela dissolução (ao invés da tomada) do poder – de ser humano sobre ser humano, de Estado sobre comunidade. Enquanto muitos socialistasclamam por um governo da classe trabalhadora e um eventual “desaparecimento gradual do Estado”, anarquistas acreditam que os meios criam os fins, que um Estado forte se torna autoperpetuante. O único caminho para atingir o anarquismo (de acordo com a teoria anarquista) é através da criação de formas cooperativas e antiautoritárias. Separar o processo dos objetivos da revolução é assegurar a perpetuação da estrutura e do estilo opressor.
(2) Crença tanto na individualidade quanto na coletividade.
A individualidade não é incompatível com o pensamento comunista. Uma distinção deve ser feita, entretanto, entre o “individualismo vigoroso”, que estimula a competição e um desprezo pelas necessidades de outras pessoas, e a verdadeira individualidade, que implica em liberdade sem infringimento sobre a liberdade das outras pessoas. Especificamente, em termos de uma organização social e política, isto significou balancear a iniciativa individual com a ação coletiva através da criação de estruturas que permitem que a tomada de decisão esteja nas mãos de todas e todos em um grupo, comunidade ou fábrica, não nas mãos de “representantes” ou “líderes”. Isso significa coordenação e ação por meio de uma rede não hierárquica (círculos sobrepostos ao invés de uma pirâmide) de pequenos grupos ou comunidades. (Veja descrições de coletivos anarquistas espanhóis na próxima seção). Por fim, isso significa que a revolução bem sucedida envolve indivíduos não manipulados e autônomos e grupos trabalhando juntos para tomar “o controle direto e não mediado da sociedade e de suas próprias vidas”.3
(3) Crença tanto na espontaneidade quanto na organização.
Anarquistas há muito tempo são acusadas e acusados de advogar o caos. A maioria das pessoas de fato acredita que anarquismo é um sinônimo para desordem, contusão, violência. Esta é uma representação totalmente errônea do que o anarquismo defende. Anarquistas não negam a necessidade de organização; elas e eles somente alegam que ela deve vir de baixo, não de cima, de dentro ao invés de fora. Uma estrutura externamente imposta ou regras rígidas que geram manipulação e passividade são as formas mais perigosas que uma revolução “socialista” pode tomar. Ninguém pode ditar a forma exata do futuro. Ação espontânea dentro do contexto de uma situação específica é necessária se nós pretendemos criar uma sociedade que responda às necessidades mutáveis dos indivíduos e dos grupos. Anarquistas acreditam em formas fluidas: a democracia participativa em pequena escala em conjunto com a cooperação e a coordenação coletiva em larga escala (sem perda da iniciativa individual).
Então, o anarquismo parece ótimo, mas como ele poderia funcionar? Este tipo de romantismo utópico não poderia ter qualquer relação com o mundo real… certo? Errado. Anarquistas na verdade tiveram muito sucesso (mesmo que apenas temporariamente) em diversos eventos (nenhum dos quais é muito conhecido). A Espanha e a França, em particular, possuem longas histórias de atividade anarquista, e foi nestes dois países que encontrei as concretizações mais excitantes do anarquismo teórico.
Além da teoria – Espanha 1936-39, França 1968
A revolução é uma coisa do povo, uma criação popular; a contrarrevolução é uma coisa do Estado. Sempre foi assim, e sempre deve ser, seja na Rússia, na Espanha, ou na China.4
Federación Anarquista Iberica (FAI), Tierra y Libertad, 3 de julho, 1936
Popularmente, acredita-se que a chamada Guerra Civil Espanhola tenha sido um simples batalha entre as forças fascistas de Franco e aquelas comprometidas com a democracia liberal. O que passou despercebido, ou foi ignorado, é que muito mais estava acontecendo na Espanha do que a guerra civil. Uma revolução social amplamente baseada na aderência aos princípios anarquistas estava tomando forma firme e concreta em muitas áreas do país. A restrição gradual e a eventual destruição deste movimento libertário são menos importantes de serem discutidas aqui do que aquilo que foi realmente conquistado pelas mulheres e homens que fizeram parte dele. Contra as expectativas, elas e eles fizeram o anarquismo funcionar.
A realização da coletivização anarquista e da autogestão trabalhadora durante a Revolução Espanhola provém um exemplo clássico de organização mais espontaneidade. Tanto na Espanha rural quanto na industrial, o anarquismo foi parte da consciência popular por muitos anos. No campo, as pessoas tinham uma longa tradição de comunalismo; muitas vilas ainda compartilhavam propriedade em comum ou davam pedaços de terra para aquelas e aqueles que não as tinham. Décadas de coletivismo e de cooperação rural estabeleceram a fundação para o anarquismo teórico, que chegou na Espanha nos anos 1870 (através do revolucionário italiano Fanelli, um amigo de Bakunin) e eventualmente deu origem ao anarcossindicalismo, a aplicação de princípios anarquistas às uniões de ramos industriais. A Confederación Nacional del Trabajo, fundada em 1910, era a união anarcossindicalista (que trabalhava proximamente com a militante Federación Anarquista Iberica) que proveu instrução e preparação para a autogestão e coletivização trabalhadora. Dezenas de milhares de livros, jornais e panfletos alcançando praticamente todas as partes da Espanha contribuíram para um ainda maior conhecimento geral do pensamento anarquista.5 Os princípios anarquistas de cooperação não hierárquica e iniciativa individual combinados com as táticas anarcossindicalistas de sabotagem, boicote e greve geral e com o treinamento na produção e na economia deram às trabalhadoras e aos trabalhadores as vivênciastanto na teoria quanto na prática. Isto conduziu a uma bem sucedida apropriação espontânea das fábricas e das terras depois de julho de 1936.
Quando a direita espanhola respondeu à vitória eleitoral da Frente Popular com uma tentativa de golpe militar, em 19 de julho de 1936, o povo respondeu com uma fúria que colocou o golpe em xeque dentro de 24 horas. A essa altura, o sucesso na urna de votação se tornou incidental; uma revolução social total havia começado. Enquanto trabalhadoras e trabalhadores industriais ou entravam em greve ou realmente começavam a comandar as fábricas por conta própria, trabalhadoras e trabalhadores agrícolas ignoravam os donos das terras e começavam a cultivar a terra por conta própria. Dentro de pouco tempo, mais de 60 % da terra na Espanha era trabalhada coletivamente – sem donos, chefes ou iniciativa competitiva. A coletivização industrial se deu principalmente na província da Catalunha, onde a influência anarcossindicalista era mais forte. Como 75 % das indústria espanholas estavam localizadas na Catalunha, esta não foi uma conquista pequena.6 Então, depois de 75 anos de preparação e luta, a coletivização foi conquistada, através da ação coletiva espontânea de indivíduos dedicados a princípios libertários.
O que, entretanto, a coletivização realmente significou, e como ela funcionou? Em geral, os coletivos anarquistas funcionavam em dois níveis: (1) democracia participativa em pequena escala e (2) coordenação em larga escala com controle na base. Em cada nível, a preocupação principal era a descentralização e a iniciativa individual. Nas fábricas e nas vilas, representantes eram escolhidas ou escolhidos para conselhos que operavam como corpos administrativos ou coordenadores. As decisões sempre vinham de reuniões de membros mais gerais, das quais todas as trabalhadoras e trabalhadores participavam. Para se protegerem dos perigos da representação, as pessoas escolhidas como representantes eram também trabalhadoras, e a todo momento estavam sujeitas à substituição imediata, assim como periódica. Esses conselhos ou comitês eram as unidades básicas de autogestão. De lá, eles poderiam ser expandidos por coordenação posterior em federações soltas que iriam ligar trabalhadoras e trabalhadores e operações sobre uma indústria ou área geográfica inteira. Desta forma, a distribuição e o compartilhamento de bens poderia ser realizado, assim como a implementação de programas de amplo interesse, tais como irrigação, transporte e comunicação. De novo, a ênfase estava no processo a partir da base para o topo. Este balanço deveras intricado entre individualidade e coletividade era atingido com mais sucesso pela Federación Regional de Campesinos de Levante, que incluía 900 coletivos, e pela Federación de Colectividades de Aragón, composta por mais ou menos 500 coletivos.
Provavelmente, o aspecto mais importante de autogestão foi o de igualar os salários. Isso tomou diversas formas, mas frequentemente o sistema de “salário familiar” era usado, com os salários sendo pagos a cada trabalhadora e trabalhador em dinheiro ou cupons de acordo com sua necessidade e a de suas e seus dependentes. Bens em abundância eram distribuídos livremente, enquanto outros eram obtidos com “dinheiro”.
Os benefícios que vieram da igualdade de salários foram tremendos. Depois que os lucros enormes nas mãos de poucos homens foram eliminados, o dinheiro em excesso foi usado tanto para modernizar a indústria (compra de novo equipamento, melhores condições de trabalho) quanto para melhorar a terra (irrigação, represas, compra de tratores etc.).
Não somente produtos melhores eram entregues mais eficientemente, mas os preços do consumo também abaixaram. Isso aconteceu em indústrias tão variadas quanto as de têxteis, metal e munições, gás, água, eletricidade, confeitaria, pesca, transporte municipal, linhas de trem, serviços telefônicos, produtos ópticos, serviços médicos etc. Trabalhadoras e trabalhadores se beneficiaram de uma semana de trabalho encurtada, de melhores condições de trabalho, de serviço médico gratuito, de desemprego pago, e de um novo orgulho de trabalhar. A criatividade era cultivada pela autogestão e pelo espírito de apoio mútuo; trabalhadoras e trabalhadores se preocupavam em entregar produtos que eram melhores que aqueles entregues sob condições de exploração. Elas e eles queriam demonstrar que o socialismo funciona, que motivos para competição e ganância são desnecessários. Dentro de meses, o padrão de vida foi elevado em todos os lugares de 50 a 100 % em muitas áreas da Espanha.
As conquistas anarquistas espanholas vão além de um maior padrão de vida e de igualdade econômica; elas envolvem a realização de ideais humanos básicos: liberdade, criatividade individual e cooperação coletiva.
Os coletivos anarquistas espanhóis não falharam; eles foram destruídos a partir do lado de fora. Aqueles (da direita e da esquerda) que acreditavam em um Estado forte trabalharam para eliminá-los – da Espanha e da história. O sucesso anarquista de por volta de oito milhões de pessoas espanholas somente agora está começando a ser revelado.
França 1968
C’est pour toi que tu fais la revolution.7
É por você que você faz a revolução.
Daniel e Gabriel Cohn-Bendit
O anarquismo desempenhou um importante papel na história francesa, mas ao invés de mergulhar no passado, eu quero focar em um evento contemporâneo – Maio-Junho, 1968. Os eventos de maio-junho possuem significância particular porque eles provaram que uma greve geral e uma tomada das fábricas por trabalhadoras e trabalhadores e das universidades por estudantes pode acontecer em um país moderno, capitalista e orientado para o consumo. Além disso, as questões levantadas por estudantes e trabalhadoras e trabalhadores na França (autodeterminação, a qualidade de vida) transpassam linhas de classe e possuem tremendas implicações para a possibilidade de mudança revolucionária em uma sociedade pós-escassez.8
Em 22 de Março de 1968, estudantes da Universidade de Nanterre, entre elas e eles o anarquista Daniel Cohn-Bendit, ocuparam prédios administrativos de sua escola, clamando por um fim à Guerra do Vietnã e à sua própria opressão como estudantes. (Suas exigências eram similares em conteúdo a aquelas de estudantes de Columbia a Berlim protestando in loco parentis.) A Universidade foi fechada, e as manifestações se espalharam até Sorbonne. A SNESUP (o sindicato de professoras e professores de escolas secundárias e universidades) convocaram uma greve, e a união de estudantes, a UNEF, organizou uma manifestação para 6 de maio. Naquele dia, estudantes e a polícia se confrontaram no Quartier Latin em Paris; manifestantes construíram barricadas nas ruas, e muitas e muitos receberam surras brutais da polícia de choque. Perto do dia 7, o número de manifestantes cresceu para entre vinte e cinquenta mil pessoas, que marchavam em direção aÉtoile cantando a Internacional. Durante os dias seguintes, as desavenças entre manifestantes e polícia no Quartier Latin se tornaram cada vez mais violentas, e o público em geral ficou ultrajado com a repressão policial. Diálogos entre uniões trabalhistas e sindicatosdo estudantado e do professorado foram iniciados, e a UNEF e a FEN (um sindicato de professoras e professores) convocaram uma greve ilimitada e uma manifestação. Em 13 de maio, perto de seiscentas mil pessoas – estudantes, professoras e professores, e trabalhadoras e trabalhadores – marcharam por Paris em protesto.
No mesmo dia, as trabalhadoras e os trabalhadores no complexo de Sud-Aviation em Nantes (uma cidade com as mais fortes tendências anarcossindicalistas na França9) entraram em greve. Essa ação foi o estopim da greve geral, a maior da história, incluindo dez milhões de pessoas – “profissionais e operárias, intelectuais e jogadoras de futebol”.10 Bancos, correios, postos de gasolina, e lojas de departamento fechadas; o metrô e os ônibus pararam de circular; e o lixo se acumulava à medida em que as coletoras e os coletores entravam em greve. Sorbonne foi ocupada por estudantes, professoras e professores, e qualquer pessoa que quisesse vir e participar das discussões lá. Diálogos políticos que questionavam a própria base da sociedade capitalista francesa perduraram por dias. Por toda Paris, pôsteres e grafites apareceram: É proibido proibir. Vida sem tempos mortos. Todo o poder à Imaginação. Quanto mais você consome, menos você vive. Maio-Junho se tornaram um “ataque à ordem estabelecida” e um “festival das ruas”.11Antigas divisões entre a classe média e a classe trabalhadora frequentemente se tornavam insignificantes à medida em que trabalhadoras e trabalhadores mais jovens e estudantes se encontravam fazendo demandas similares: libertação de um sistema autoritário opressor (universidade ou fábrica) e o direito de tomar decisões sobre suas próprias vidas.
O povo da França permanecia no limiar da revolução total. Uma greve geral tinha paralisado o país. Estudantes ocuparam as universidades e trabalhadoras e trabalhadores, as fábricas. O que faltava a ser feito era que estas e estes realmente trabalhassem nas fábricas, que tomassem a ação direta não mediada e não aceitassem nada menos que a autogestão total. Infelizmente, isso não aconteceu. Políticas autoritárias e métodos burocráticos são difíceis de morrer, e a maioria dos grandes sindicatos trabalhistas francesas estavam amarradas a ambos. Como na Espanha, o Partido Comunista trabalhou contra as ações diretas e espontâneas do povo nas ruas: a Revolução deve ser ditada a partir do topo. Líderes da CGT (o sindicato comunista) tentou impediros contatos entre estudantes e trabalhadoras e trabalhadores, e uma esquerda unida logo se tornou uma impossibilidade. Enquanto de Gaulle e a polícia mobilizavam suas forças e uma violência ainda maior era utilizada, muitas e muitos grevistas aceitavam exigências limitadas (melhor pagamento, menos horas de trabalho etc.) e voltavam ao trabalho. Estudantes continuavam com seus confrontos cada vez mais sangrentos com a polícia, mas o momento havia passado. No fim de junho, a França havia retornado à “normalidade” sob o mesmo velho regime gaullista.
O que aconteceu na França em 1968 está vitalmente conectado à Revolução Espanhola de 1936; em ambos os casos, princípios anarquistas não foram somente discutidos, mas implementados. O fato de que a classe trabalhadora francesa nunca realmente alcançou a autogestão operária pode ser devido ao anarcossindicalismo não ter sido tão prevalecente na França nos anos anteriores a 1968 quanto na Espanha antes de 1936. É claro, isso é uma grande simplificação; as explicações para uma revolução que “falhou” podem ser infinitas.
O que é crucial aqui, mais uma vez, é o fato de que ela realmente aconteceu. Maio-Junho de 1968 contesta a crença comum de que uma revolução é impossível em um país capitalista avançado. As crianças das classes média e trabalhadora francesas, criadas para a passividade, para o consumismo ignorante, e/ou para o trabalho alienado, estavam rejeitando muito mais que o capitalismo.
Elas estavam questionando a própria autoridade, exigindo o direito a uma existência livre e significativa. Logo, as razões para revolução em uma sociedade industrial modernanão estão mais limitadas à fome e à escassez material; elas incluem o desejo pela libertação humana de todas as formas de dominação, em essência uma mudança radical na própria “qualidade da vida cotidiana”.12 Elas pressupõem a necessidade de uma sociedade libertária.
O anarquismo não pode mais ser considerado um anacronismo.
Diz-se frequentemente que anarquistas vivem em um mundo de sonhos e não veem as coisas que acontecem hoje. Nós as vemos bem demais, e em suas cores verdadeiras, e é isso que nos faz portar o machado na floresta de preconceitos que nos persegue.13
Pyotr Kropotkin
Há duas razões principais por que a revolução foi abortada na França: (1) o preparo inadequado na teoria e na prática do anarquismo e (2) o vasto poder do Estado aliado ao autoritarismo e à burocracia em grupos de esquerda potencialmente simpatizantes. Na Espanha, a revolução foi mais disseminada e tenaz por causa da extensa preparação. No entanto, ela ainda foi eventualmente esmagada por um Estado fascista e por esquerdistas autoritários. É importante considerar esses dois fatores em relação à situação nos Estados Unidos hoje. Nós não apenas estamos encarando um poderoso Estado cujas forças armadas, polícia e armas nucleares poderiam destruir instantaneamente a raça humana inteira, mas também nos encontramos confrontando uma pervasiva reverência à autoridade e às formas hierárquicas cuja continuação é assegurada diariamente através do tipo de passividade caseira criada pela família, pela escola, pela igreja e pela tela da TV. Além disso, os E.U.A. são um país enorme, com apenas uma história pequena e esporádica de atividade anarquista. Pareceria que não somente não temos preparo, nós estamos literalmente miniaturizados por um Estado mais poderoso que aqueles da França e da Espanha combinados. Dizer que estamos lidando contra chances tremendas é um eufemismo.
Mas aonde definir o Inimigo como um gigante brutal e inconquistável nos leva? Se não nos permitirmos nos paralisar pelo fatalismo e pela futilidade, isso poderia nos forçar a redefinir a revolução de uma maneira que focasse no anarcafeminismo como a perspectivadentro da qual enxergaríamos a luta pela libertação humana. São as mulheres que agora possuem a chave para novas concepções de revolução, as mulheres que percebem que a revolução não pode mais significar a tomada do poder ou da dominação de um grupo por outro – sob quaisquer circunstâncias, por qualquer período de tempo. É a própria dominação que deve ser abolida. A própria sobrevivência do planeta depende disso. Não podemos mais permitir que os homens manipulem desumanamente o ambiente para seu interesse próprio, assim como não podemos mais permiti-los destruir sistematicamente raças inteiras de seres humanos. A presença da hierarquia e da mentalidade autoritária ameaçam a existência humana e planetária. A libertação global e a política libertária se tornaram necessárias, não somente utópicos sonhos dourados. Nós devemos “adquirir as condições de vida para sobreviver”.14
Focar no anarcafeminismo como o panorama revolucionário necessário para nossa luta não é negar a imensidão da tarefa perante nós. Nós realmente enxergamos “bem demais” as raízes de nossa opressão e o poder tremendo do Inimigo. Mas nós também vemos que o caminho para fora do mortal ciclo histórico de revoluções incompletas ou abortadas requer de nós novas definições e novas táticas – uma que aponte em direção ao tipo de processo de “esvaziamento”15 descrito mais tarde na seção Tornando a Utopia Real. Como mulheres, nós estamos particularmente bem adequadas à participação nesse processo. Dentro do submundo por eras, nós aprendemos a ser sorrateiras, sutis, astutas, silenciosas, tenazes, agudamente sensíveis e especialistas em habilidades de comunicação.
Para nossa própria sobrevivência, nós aprendemos a tecer teias de rebelião que fossem invisíveis ao olhar “do mestre”.
Nós sabemos como é a aparência de uma bota quando vista pelo lado de baixo, nós conhecemos a filosofia das botas…
Em breve invadiremos como ervas daninhas,
por toda a parte, porém lentamente;
as plantas cativas irão se rebelar
conosco, cercas irão tombar,
paredes de tijolos irão ruir e cair,
não haverá mais botas.
Enquanto isso nós comemos sujeira
e dormimos; nós estamos esperando
abaixo de seus pés.
Quando dissermos Ataque
você não escutará nada
a princípio.16
A preparação anarquista não é inexistente neste país. Ela existe nas mentes e nas ações de mulheres se que se aprontam (frequentemente, sem conhecimento) para uma revolução cujas formas irão estilhaçar a inevitabilidade histórica e o próprio processo da história.
O anarquismo e o movimento feminista
O desenvolvimento da irmandade é uma ameaça única, pois está direcionado contra o modelo social e psíquico básico de hierarquia e dominação.17
Mary Daly
Por todo o país, grupos independentes de mulheres começaram a funcionar sem a estrutura, sem os líderes e sem os outros factótuns da esquerda masculina, criando, independente e simultaneamente, organizações similares àquelas de anarquistas de muitas décadas e locais. Não é nenhum acidente.18
Cathy Levine
Eu não toquei no assunto do papel das mulheres na Espanha e na França, pois ele pode ser resumido em uma palavra – inalterado. Homens anarquistas foram pouco melhores que os machos em todas as partes em sua submissão das mulheres.19Daí a absoluta necessidade de uma revolução anarquista feminista. Do contrário, os próprios princípios nos quais o anarquismo se baseia se tornam pura hipocrisia.
O atual movimento das mulheres e uma análise feminista radical da sociedade contribuíram muito para o pensamento libertário. De fato, acredito que feministas têm sido anarquistas inconscientes na teoria e na prática há anos. Nós agora precisamos nos tornar conscientes das conexões entre anarquismo e feminismo e usar esta perspectiva para nossos pensamentos e ações. Nós conseguimos ver muito claramente aonde queremos ir e como chegarmos lá. Para sermos mais efetivas, para criar o futuro que sentimos ser possível, nós precisamos nos dar conta de que o que queremos não é mudança, mas transformação total.
A perspectiva feminista radical é praticamente anarquismo puro. A teoria básica postula a família nuclear como a base de todos os sistemas autoritários. A lição que a criança aprende, a partir do pai até o professor, o chefe, o Deus, é OBEDECER a grande voz anônima da Autoridade.
Graduar da infância à vida adulta é se tornar um autômato completo, incapaz de questionar ou mesmo de pensar claramente. Nós passamos para a América média, acreditando em tudo que nos dizem e aceitando entorpecidamente a destruição da vida por todo nosso redor.
As feministas estão lidando com um processo ensandecedor – a atitude dominadora masculina perante o mundo externo, permitindo apenas relacionamentos sujeito/objeto. A política masculina tradicional reduz seres humanos ao estatuto de objetos e então os domina e manipula para “objetivos” abstratos. As mulheres, por outro lado, estão tentando desenvolver uma consciência de “Outro” em todas as áreas. Nós vemos relacionamentos de sujeito-para-objeto não somente como desejáveis, mas como necessários. (Muitas de nós escolhemos trabalhar com e amar apenas mulheres por apenas essa razão – esses tipos de relacionamentos são muito mais possíveis.) Juntas estamos trabalhando para expandir nossa empatia e compreensão das outras coisas vivas e nos identificar com essas entidades fora de nós mesmas, ao invés de objetificá-las e manipulá-las. A esta altura, um respeito por toda a vida é um pré-requisito para nossa própria sobrevivência.
A teoria feminista radical também critica os padrões de pensamento hierárquico masculinos – nos quais a racionalidade domina a sensualidade, a mente domina a intuição, e divisões e polaridades persistentes (ativo/passiva, criança/adulto, são/insana, trabalho/diversão, espontaneidade/organização) nos alienam da experiência mente-corpo como um Todo e do Contínuo da experiência humana. As mulheres estão tentando se livrar destas divisões, viver em harmonia com o universo como um todo, seres humanos dedicados à cura coletiva de nossas feridas e cismas individuais.
Na prática real dentro do movimento das mulheres, feministas tiveram tanto sucessos quanto falhas em abolir a hierarquia e a dominação. Eu acredito que as mulheres frequentemente falam e agem como anarquistas “intuitivas”, ou seja, nós nos aproximamos, ou ficamos à beira, de uma completa negação do pensamento e da organização patriarcal. Essa abordagem, entretanto, é bloqueada pelas formas poderosas e insidiosas que o patriarcado toma – em nossas mentes e em nossos relacionamentos umas com as outras. Viver dentro de uma sociedade autoritária e sofrer condicionamento dela frequentemente nos previne de fazer a tão importante conexão entre o feminismo e o anarquismo. Quando dizemos que estamos lutando contra o patriarcado, não é sempre claro para todas nós que isso significa lutar contra toda hierarquia, toda liderança, todo governo, e a própria ideia de autoridade por si mesma. Nossos impulsos em direção ao trabalho coletivo e aos pequenos grupos sem líderes têm sido anarquistas, mas na maioria dos casos nós não os chamamos por este nome. E isso é importante, porque umacompreensão do feminismo como anarquismo poderia servir como trampolim para que as mulheres pulassempara fora do reformismo e das medidas temporáriase passassem para um confrontamento revolucionário com a natureza básica da política autoritária.
Se nós queremos “pôr o patriarcado abaixo”, nós precisamos conversar sobre anarquismo, saber exatamente o que ele significa e usar esta perspectiva para transformarmos a nós mesmas e a estrutura de nossas vidas cotidianas. Feminismo não significa poder corporativo feminino ou uma mulher presidente; significa nenhum poder corporativo e nenhum presidente. A Emenda dos Direitos Iguais não vai transformar a sociedade; ela só dá às mulheres o “direito” de se ligar a uma economia hierárquica. Desafiar o sexismo significa desafiar toda hierarquia – econômica, política e pessoal. E isso significa uma revolução anarcafeminista.
Especificamente, quando feministas foram anarquistas, e quando nós paramos no meio do caminho? Quando a segunda onda do feminismo se espalhou ao redor do país no final dos anos 60, as formas que os grupos de mulheres tomaram frequentemente refletiram uma consciência libertária implícita. Em rebelião contra os jogos de poder competitivos, a hierarquia impessoal e as táticas de organização em massa da política masculina, as mulheres romperam em grupos de conscientização pequenos e sem líderes, que lidavam com assuntos pessoais em nossas vidas cotidianas. Face a face, nós tentamos chegar à raiz de nossa opressão pelo compartilhamento de nossas percepções e de nossas experiências até então desvalorizadas. Nós aprendemos umas das outras que a política não está “lá fora”, mas em nossas mentes e corpos e entre indivíduos. Relacionamentos pessoais poderiam oprimir e nos oprimiram como uma classe política. Nossa miséria e nosso auto-ódio eram um resultado direto da dominação masculina – no lar, na rua, no trabalho e na organização política.
Então, em muitas áreas desconectadas dos E.U.A., grupos de conscientização se desenvolveram como uma (re)ação espontânea e direta às formas patriarcais. A ênfase no grupo pequeno como unidade organizacional básica, no pessoal e no político, no antiautoritarismo e na ação direta espontânea foi essencialmente anarquista. Mas, onde estavam os anos e anos de preparação que inflamaram as atividades revolucionárias espanholas? A estrutura dos grupos feministas possuía uma notável semelhança àquela dos grupos de afinidade anarquistas dentro das uniões anarcossindicalistas na Espanha, na França e em muitos outros países. No entanto, nós não nos chamávamos de anarquistas ou nos organizávamos conscientemente ao redor de princípios anarquistas. Na época, nós nem mesmo tínhamos uma rede subterrânea de comunicação e compartilhamento de ideias e habilidades. Antes que o movimento das mulheres fosse mais que um punhado de grupos isolados tateando no escuro em direção a respostas, o anarquismo como um ideal não especificado existia em nossas mentes.
Eu acredito que isso põe as mulheres na posição única de serem as portadoras de uma consciência anarquista por baixo da superfície que, caso seja articulada e concretizada, pode nos levar mais longe do que qualquer grupo anterior em direção à conquista da revolução total. O anarquismo intuitivo das mulheres, caso seja lapidado e esclarecido, é um incrível salto para a frente (ou além) na luta pela libertação humana. A teoria feminista radical acredita que o feminismo é a Revolução Derradeira. Isto será verdade se, e somente se, nós reconhecermos e alegarmos nossas raízes anarquistas. No ponto em que falhamos em ver a conexão feminista ao anarquismo, nós paramos de caminhar em direção à revolução e nos aprisionamos na “velha rotina política masculina”. É hora de parar de tatear na escuridão e olhar o que fizemos e estamos fazendo dentro do contexto de onde queremos estar por fim.
Grupos de conscientização foram um bom começo, mas eles frequentemente ficaram tão atolados nas conversassobre problemas pessoais que eles falharam em saltar para a ação direta e para o confronto político. Grupos que realmente se organizaram ao redor de um assunto ou projeto específico algumas vezes descobriram que a “tirania da falta de estrutura” poderia ser tão destrutiva quanto a “tirania da tirania”.20 O fracasso em misturar organização com espontaneidade frequentemente causou a emergência daquelas com mais habilidades ou carisma pessoal como líderes. O ressentimento e a frustração sentida por aquelas que se encontraram seguindo provocou lutas internas, sentimentos de culpa e disputas por poder. Muito frequentemente, isto terminou ou em total inefetividade ou em uma aderência reacionária a “o que nós precisamos é de mais estrutura” (no velho sentido masculino da palavra, como cima/baixo).
Mais uma vez, eu acho que o que estava faltando era uma análise anarquista verbalizada. A organização não precisa minar a espontaneidade ou seguir padrões hierárquicos. Os grupos ou projetos feministas que têm sido mais bem sucedidos são aqueles que experimentaram com várias estruturas fluidas: a rotação de tarefas e responsáveis, compartilhamento de todas as habilidades, igual acesso a informação e recursos, tomada de decisão não monopolizada, e espaços de tempo para discussão da dinâmica do grupo. Este último elemento estrutural é importante porque envolve um esforço contínuo por parte dos membros do grupo para vigiar as “políticas de poder rastejantes”. Se as mulheres estão se comprometendo verbalmente com o trabalho coletivo, isto requer um esforço real para desaprender a passividade (para eliminar “seguidoras”) e compartilhar habilidades especiais ou conhecimento (para evitar “líderes”). Isto não significa que não podemos nos inspirar pelas palavras e pelas vidas de umas das outras; ações fortes por indivíduos fortes podem ser contagiosas e, dessa forma, importantes. Mas nós devemos ter cuidado para não escorregar até os antigos padrões de comportamento.
Pelo lado positivo, a estrutura emergente do movimento feminista nos últimos anos geralmente tem seguido um padrão anarquista de grupos orientados a pequenos projetos tecendo continuamente uma rede subterrânea de comunicação e de ação coletiva ao redor de assuntos específicos O sucesso parcial em evitar líderes/“astros” e a difusão de projetos de ação pequena (Centros de Crise de Estupro, Coletivos de Saúde Feminina) ao redor do país tornou extremamente difícil para o movimento das mulheres ser centralizado em uma pessoa ou grupo. O feminismo é um monstro de muitas cabeças que não pode ser destruído por uma decapitação singular. Nós nos espalhamos e crescemos de maneiras que são incompreensíveis para uma mentalidade hierárquica.
Isso não é, entretanto, subestimar o imenso poder do Inimigo. A forma mais traiçoeira que esse poder pode tomar é a cooptação, que se alimenta de qualquer visão limitada e não anarquista do feminismo como sendo mera “mudança social”. Pensar no sexismo como um mal que pode ser erradicado com a participação feminina na maneira como as coisas são é assegurar a continuação da dominação e da opressão. Um capitalismo “feminista” é contraditório em termos. Quando estabelecermos sindicatos de crédito, restaurantes, livrarias etc. para mulheres, devemos ser claras que estamos fazendo isso para nossa própria sobrevivência, para o propósito de criar um contrassistema cujos processos contradizem e desafiam a competição, o lucro, e todas as formas de opressão econômica.
Nós devemos estar comprometidas com a “vida nas fronteiras”21, com valores anticapitalistas e não consumistas. O que nós queremos não é nem integração nem um golpe de Estado que iria “transferir o poder de um conjunto de meninos para outro conjunto de meninos”.22 O que pedimos não é nada menos que revolução total, revolução cujas formas inventem um futuro intocado pela desigualdade, pela dominação ou pelo desrespeito à variação individual – em suma, uma revolução feminista-anarquista. Eu acredito que as mulheres souberam o tempo inteiro como se mover na direção da libertação humana; nós apenas precisamos nos livrar das formas prolongadas de política masculinas e de seus ditados e focar em nossa própria análise feminina anarquista.
Aonde vamos a partir daqui? Tornando a utopia real
Ah, sua visão é baboseira romântica, religiosidade melosa, idealismo frágil.” “Você escreve poesia porque você não consegue escrever detalhes concretos.” Assim diz a pequena voz no fundo da minha (sua?) cabeça. Mas a frente da minha cabeça sabe que se você estivesse aqui perto de mim, nós poderíamos conversar. E que em nossa conversa poderiam vir descrições (concretas e detalhadas) de como tal e tal coisa poderia acontecer, como isto ou aquilo poderia ser alcançado. O que realmente falta na minha visão são corpos humanos concretos e detalhados. Então não seria uma visão frágil, seria uma realidade carnal.23
Su Negrin
Ao invés de ficarmos desencorajadas e isoladas agora, nós deveríamos estar em nossos grupos pequenos – discutindo, planejando, criando e arranjando problemas… nós deveríamos estar sempre criando e nos engajando ativamente em atividade feminista, porque nós todas prosperamos nela; na ausência de[la], as mulheres tomam tranquilizantes, ficam loucas, e cometem suicídio.24
Cathy Levine
Aquelas de nós que viveram a excitação dos protestos sentados, das marchas, das greves estudantis, das manifestações e da REVOLUÇÃO AGORA nos anos 60 podemos nos encontrar desilusionadas e diretamente cínicas quanto a acontecer qualquer coisa nos anos 70. Desistir ou entrar no sistema (casamento “aberto”? capitalismo moderninho? o Guru Maharaji) parece mais fácil do que enfrentar a possibilidade de décadas de luta e talvez até mesmo o fracasso derradeiro. A esta altura, nós não temos uma perspectiva geral para enxergar o processo de revolução. Sem ela, estamos condenadas à luta isolada e sem saída ou à solução individual. O tipo de perspectiva, ou ponto de união, que o anarcafeminismo provém pareceria ser um pré-requisito para qualquer esforço prologado atingir objetivos utópicos. Ao olhar para a Espanha e para a França, nós podemos ver que a verdadeira revolução não é “nem um acontecimento acidental nem um golpe de Estado construído artificialmente de cima”25. Ela leva anos de preparo: compartilhamento de ideias e informação, mudanças na consciência e no comportamento e criação de alternativas políticas e econômicas às estruturas capitalistas e hierárquicas. Ela toma a ação direta espontânea por parte de indivíduos autônomos através do confronto político coletivo. É importante “libertar sua mente” e sua vida pessoal, mas isso não é suficiente. A libertação não é uma experiência insular; ela ocorre em conjunto com outros seres humanos. Não há “mulheres libertas” individuais.
Então, eu estou falando de um processo a longo prazo, uma série de ações nas quais nós desaprendemos a passividade e aprendemos a tomar o controle de nossas próprias vidas. Eu estou falando de um “desaparecimento gradual” do sistema presente através da formação de alternativas mentais e físicas (concretas) para o modo como as coisas estão. A imagem romântica de um pequeno bando de guerrilhas armadas sobrepujando o governo dos E.U.A. é obsoleta (como é toda política masculina) e basicamente irrelevante a esta concepção de revolução. Nós seríamos esmagadas se tentássemos. Além disso, como o cartaz diz, “O que queremos não é sobrepujar o governo, mas uma situação em que ele se perca namistura”. Isso foi o que aconteceu (temporariamente) na Espanha, e quase aconteceu na França. Se a resistência armada será necessária em algum momento está aberto a debate. O princípio anarquista de “os meios criam os fins” parece implicar pacifismo, mas o poder do Estado é tão grande que é difícil ser absoluta quanto à não violência. (A resistência armada foi crucial na Revolução Espanhola, e também pareceu importante na França de 1968.) A questão do pacifismo, no entanto, precisaria de outra discussão, e estou preocupada aqui em enfatizar a preparação necessária para transformar a sociedade, uma preparação que inclui um panorama anarcafeminista, a paciência revolucionária de longo alcance e o contínuo confronto ativo contra atitudes patriarcais arraigadas.
As táticas de preparação propriamente ditas são coisas com as quais estamos envolvidas há muito tempo. Nós precisamos continuá-las e desenvolvê-las mais. Eu as vejo funcionando em três níveis: (1) “educativo” (compartilhamento de ideias, experiências), (2) econômico/político e (3) pessoal/político.
“Educação” tem um tom bastante condescendente, mas eu não quero dizer “levar a palavra às massas” ou fazer indivíduos desenvolverem sentimentos de culpa para adotar estilos de vida prescritos. Eu estou falando dos muitos métodos que desenvolvemos para compartilhar nossas vidas umas com as outras – desde escrita (nossa rede de publicações feministas), grupos de estudo e rádios e programas de TV feministas até manifestações, marchas e teatro de rua. A mídia de massa parece ser uma área particularmente importante para comunicação e influência revolucionárias – apenas pense como nossas próprias vidas foram moldadas erroneamente pelo rádio e pela TV26. Vistas em isolamento, estas coisas podem parecer ser inefetivas, mas as pessoas realmente mudam a partir da escrita, da leitura, da conversa e de escutar umas às outras, assim como da participação ativa em movimentos políticos. Sair juntas para as ruas destrói a passividade e cria um espírito de esforço coletivo e uma energia de vida que podem ajudar a nos sustentar e nos transformar.
Minha própria transformação de uma típica garota estadunidense para uma anarcafeminista foi resultado de uma década de leitura, discussão e envolvimento com muitos tipos de pessoas e políticas – do centro-oeste às costas oeste e leste. Minhas experiências podem de algumas formas ser únicas, mas elas não são, creio, extraordinárias. Em muitos, muitos lugares neste país, as pessoas estão lentamente começando a questionar a maneira com que foram condicionadas à aceitação e à passividade. Deus e o Governo não são as autoridades supremas que já foram. Isso não é minimizar a extensão do poder da Igreja e do Estado, mas sim enfatizar que mudanças aparentemente irrelevantes no pensamento e no comportamento, quando solidificadas em ação coletiva, constituem um desafio real ao patriarcado.
Táticas econômicas/políticas caem no campo da ação direta e da “ilegalidade proposital” (termo de Daniel Guérin). O anarcossindicalismo especifica três grandes modos de ação direta: sabotagem, greve e boicote. Sabotagem significa “obstruir por todo método possível o processo regular de produção”27. Mais e mais frequentemente, a sabotagem é praticada por pessoas influenciadas inconscientemente pelos valores sociais em mudança. Por exemplo, o ausentismo sistemático pode ser realizado tanto por operários quanto por trabalhadores administrativos. Pode-se desafiar os empregadores tão sutilmente quanto pela “desaceleração” ou tão descaradamente quanto pelo “erro proposital”. Fazer o mínimo de trabalho possível tão vagarosamente quanto possível é uma prática comum de empregadas e empregados, assim como atrapalhar o próprio processo de trabalho (frequentemente como tática sindical durante uma greve). Veja o habitual arquivamento errôneo ou a perda de “documentos importantes” por secretárias, ou a troca contínua de placas de destino em trens durante a greve ferroviária de 1967 na Itália.
Táticas de sabotagem podem ser usadas para fazer as greves serem muito mais efetivas. A própria greve é a arma trabalhista mais importante. Qualquer greve individual tem o poder de paralisar o sistema se ela se espalhar para outras indústrias e se tornar uma greve geral. A revolução social total está então a apenas um passo. É claro, a greve geral deve ter como objetivo final a autogestão das trabalhadoras e dos trabalhadores (assim como uma noção clara de como alcançá-la e mantê-la), ou então a revolução será natimorta (como na França de 1968).
O boicote também pode ser uma estratégia poderosa da greve ou do sindicato (como o boicote de uvas, de alface, de vinhos e de calças não produzidos pelo sindicato). Além disso, ele pode ser usado para forçar mudanças sociais e econômicas. A recusa ao voto, ao pagamento de impostos de guerra, ou à participação da competição capitalista e do consumo excessivo são todas ações importantes quando aliadas com o apoio a estruturas alternativas e não lucrativas (cooperativas de alimentos, coletivos de saúde e direito, reciclagem de vestuário e livrarias, escolas livres etc.). O consumismo é uma das maiores fortalezas do capitalismo. Boicotar as compras por si só (especialmente os produtos projetados para a obsolescência e aqueles publicizados ofensivamente) é uma tática que tem o poder de mudar a “qualidade da vida cotidiana”. A recusa ao voto é muito praticada por desespero ou passividade ao invés de como uma declaração política consciente contra uma pseudodemocracia onde o poder e o dinheiro elegem uma elite política. O não voto pode significar algo além de consentimento silencioso se nós participarmos simultaneamente da criação de formas democráticas genuínas em uma rede alternativa de grupos anarquistas de afinidade.
Isso nos leva à terceira área – pessoal/política, que está, é claro, conectada às outras duas. O grupo anarquista de afinidade tem sido há muito tempo uma estrutura organizacional revolucionária. Em uniões anarcossindicalistas, eles funcionavam como campos de treinamento para a autogestão trabalhista. Eles podem ser agrupamentos temporários de indivíduos para um objetivo específico de curto prazo, coletivos de trabalho mais “permanentes” (como alternativa ao profissionalismo e ao elitismo de carreira), ou coletivos vivos onde indivíduos aprendem como se livrar da dominação ou da possessividade em seus relacionamentos indivíduo a indivíduo. Potencialmente, grupos anarquistas de afinidade são a base sobre a qual podemos construir uma nova sociedade libertária e não hierárquica. O modo como vivemos e trabalhamos muda a maneira como pensamos e percebemos (e vice-versa), e quando mudanças na consciência se tornam mudanças na ação e no comportamento, a revolução começa.
Tornar a utopia real envolve muitos níveis de luta. Além das táticas específicas que podem ser constantemente desenvolvidas e mudadas, nós precisamos de tenacidade política: a força e a habilidade de enxergar além do presente até um futuro alegre e revolucionário. Ir daqui até lá requer mais do que um voto de confiança. Requer de cada uma e cada um de nós um comprometimento cotidiano e de longo prazo à possibilidade e à ação direta.
A transformação do futuro
A criação da cultura das mulheres é um processo tão pervasivo quanto podemos imaginar, pois sua participação em uma VISÃO que está continuamente se desdobrando sob novas formas em tudo que vai desde nossas conversas com amigas até os boicotes à carne, até a tomada de fachadas para centros de cuidado infantil, até o fazer amor com uma irmã. É revelador, indefinível, exceto como um processo de mudança. A cultura das mulheres é todas nós exorcizando, nomeando, criando em direção à visão de harmonia com nós mesmas, com outras, e com nossa irmã Terra. Nos últimos dez anos, nós chegamos mais rápido e mais perto do que nunca dentro da história do patriarcado em sobrepujar seu poder… é causa de esperança revigorante – selvagem, contagiosa, inconquistável, louca ESPERANÇA!… A esperança, a vitória da vida sobre a morte, sobre o desespero e sobre a insignificância está em todos os lugares onde olho agora – como talismãs da fé na VISÃO FEMININA…28
Laurel
Eu costumava pensar que se a revolução não acontecesse amanhã nós seríamos todas condenadas a um destino catastrófico (ou pelo menos catatônico). Eu não acredito mais nesse tipo de revolução antes/depois, e eu acho que nos preparamos para o fracasso e para o desespero ao pensarmos nela nesses termos. Eu realmente acredito que tudo de que nós todas precisamos, do que absolutamente precisamos, para continuar lutando (apesar da opressão de nossas vidas cotidianas) é ESPERANÇA, ou seja, uma visão de futuro tão linda e tão poderosa que nos puxa firmemente para a frente nacriação, da base para o topo, de um mundo interno e externo habitável e autossuficiente para todas. E por autossuficiente eu quero dizer não apenas em termos de necessidades de sobrevivência (comida suficiente, roupa, abrigo etc.), mas também de necessidades psicológicas (como um ambiente não opressivo que fomente liberdade total de escolha perante alternativas específicas e concretamente possíveis). Eu acredito que a esperança existe – que ela está na “visão feminina” de Laurel, na “coragem existencial”29 de Mary Daly e no anarcafeminismo. Nossas vozes diferentes descrevem o mesmo sonho, e “somente o sonho pode destruir as pedras que bloqueiam nossas bocas”30. Enquanto falamos, nós mudamos, e enquanto mudamos, nós transformamos a nós e ao futuro simultaneamente.
É verdade que não há solução, individual ou de outra forma, em nossa sociedade.31 Mas se nós pudermos apenas balancear este conhecimento tão deprimente com uma percepção das metamorfoses radicais que experienciamos – em nossa consciência e em nossas vidas – então talvez possamos ter a coragem de continuar a criar o que SONHAMOS que é possível. Obviamente, não é fácil enfrentar a opressão diária e ainda continuar com esperança. Mas essa é nossa única chance. Se abandonarmos a esperança (a habilidade de ver conexões, de sonhar o presente no futuro), então nós já perdemos. A esperança é a ferramenta revolucionária mais importante de uma mulher; ela é o que damos a cada uma cada vez que compartilhamos nossas vidas, nosso trabalho e nosso amor. Ela nos puxa para fora do auto-ódio, da autoculpa e do fatalismo que nos mantém prisioneiras em celas separadas. Se nos rendermos à depressão e ao desespero agora, nós estaremos aceitando a inevitabilidade da política autoritária e da dominação patriarcal (“Desespero é a pior traição, a mais fria sedução: acreditar finalmente que o inimigo irá prevalecer.”32 – Marge Piercy) Nós não podemos deixar nossa dor e nossa raiva caírem na perda da esperança ou em meias “soluções” de visão limitada. Nada que possamos fazer é o suficiente, mas, por outro lado, aquelas “pequenas mudanças” que fazemos em nossas mentes, em nossas vidas, nas vidas de outras pessoas, não são totalmente fúteis e inefetivas. Leva um longo tempo para fazer uma revolução: é algo para o qual alguém se prepara e vive no agora. A transformação do futuro não será instantânea, mas ela pode ser total… um contínuo de pensamento e ação, individualidade e coletividade, espontaneidade e organização, indo do que é para o que pode ser.
O anarquismo provém um panorama para esta transformação. É uma visão, um sonho, uma possibilidade que se torna “real” à medida em que a vivemos. O feminismo é a conexão que liga o anarquismo ao futuro. Quando nós finalmente enxergarmos essa conexão claramente, quando nos agarrarmos a essa visão, quando nos recusarmos a ser estupradas para longe dessa ESPERANÇA, nós passaremos por cima do abismo do nada em direção a uma existência agora apenas vagamente imaginável. A visão feminina que é o anarcafeminismo tem sido carregado dentro dos nossos corpos femininos por séculos. “Vai ser uma luta constante em cada uma de nós para dar a luz a esta visão”33 mas nós precisamos fazê-lo. Nós devemos “galopar nossa raiva como elefantes até a batalha”.
Nós somos sonâmbulas perturbadas por lampejos de pesadelos,
Em alas trancadas nós fechamos nossa visão, renunciando…
Somente quando quebrarmos o espelho e escalarmos até nossa visão,
Somente quando formos o vento ao mesmo tempo fluindo e cantando,
Somente no sonho em que nos tornaremos com nossos ossos como lanças,
nós finalmente seremos reais
e estaremos despertas.34
Notas
1 Emma Goldman, “Anarchism: What It Really Stands For”, Red Emma Speaks (Vintage Books, 1972), p. 59.
2 Su Negrin, Begin at Start (Times Change Press, 1972), p. 128.
3 Murray Bookchin, “On Spontaneity and Organization”, Liberation, março de 1972, p. 6.
4 Paul Berman, Quotations from the Anarchists (Praeger Publishers, 1972), p. 68.
5 Sam Dolgoff, The Anarchist Collectives (Free Life Editions, 1974), p. 27.
6 Ibid, pp. 6, 7, 85.
7 Daniel e Gabriel Cohn-Bendit, Obsolete Communism: The Left Wing Alternative (McGraw-Hill, 1968), p. 256.
8 Veja Post-Scarcity Anarchism, de Murray Bookchin (Ramparts Press, 1974), tanto para uma análise perspicaz dos eventos de maio/junho quanto para uma discussão do potencial revolucionário em uma sociedade tecnológica.
9 Ibid, p. 262.
10 lbid, p. 250.
11 Bookchin, On Spontaneity and Organization, pp. 11-12.
12 Bookchin, Post-Scarcity Anarchism, p. 249.
13 Berman, p. 146.
14 Bookchin, Post-Scarcity Anarchism, p. 40.
15 Bookchin, On Spontaneity and Organization, p. 10.
16 Margaret Atwood, “Song of the Worms”, You Are Happy (Harper & Row, 1974), p. 35.
17 Mary Daly, Beyond God the Father (Beacon Press, 1973), p. 133.
18 Cathy Levine, “The Tyranny of Tyranny”, Black Rose, nº 1, p. 56.
19 Temma Kaplan do departamento de história da University of California in Los Angeles (UCLA) fez uma pesquisa considerável sobre os grupos anarquistas femininos (especialmente o “Mujeres Libres”) na Revolução Espanhola. Veja Também Liz Willis, “Women in the Spanish Revolution”, Solidarity Pamphlet, nº 48.
20 Veja Joreen, “The Tyranny of Structurelessness”, Second Wave, vol. 2, nº 1, e Cathy Levine, “The Tyranny of Tyranny”, Black Rose, nº 1.
21 Daly, p. 55.
22 Robin Morgan, discurso em Boston College, Boston, Massachussets, novembro de 1973.
23 Negrin, p. 171.
24 Levine, p. 50.
25 Dolgoff, p. 19.
26 Os Cohn-Bendit declaram que um grande erro na Paris de 1968 foi o fracasso em tomar o controle completo da mídia, especialmente do rádio e da TV.
27 Goldman, “Syndicalism: Its Theory and Practice”, Red Emma Speaks, p. 71.
28 Laurel, “Towards a Woman Vision”, Amazon Quarterly, vol. 1, nº 2, p. 40.
29 Daly, p. 23.
30 Marge Piercy, “Provocation of the Dream”.
31 Fran Taylor, “A Depressing Discourse on Romance, the Individual Solution, and Related Misfortunes”, Second Wave, vol. 3, nº 4.
32 Marge Piercy, “Laying Down the Tower”, To Be of Use (Doubleday, 1973), p. 88.
33 Laurel, p. 40.
34 Piercy, “Provocation of the Dream”.
Publicado originalmente como “Anarchism: The Feminist Connection” em Second Wave, vol. 4, nº 1, Boston, 1975. Traduzido por Cami Álvares Santos