Entre 8 a 10 de maio de 1998, La Gryffe, uma livraria anarquista em Lyon (França), organizou uma jornada anarquista. Estes três dias significaram a oportunidade de um “acerto de contas com o movimento social, as formas de luta, o movimento anarquista desde o maio de ’68 e pensar sobre os recursos futuros para agir sobre o mundo”.
Esses três dias iluminaram um paradoxo no movimento anarquista. O questionamento da sociedade em seu todo continua em realidade limitado a questionar a esfera ‘pública’, a única considerada como política.
Lamentavelmente é evitado fazê-lo via questionando o que acontece no ‘privado’, a esfera ‘pessoal’ (seja dentro de grupos militantes assim como no individual doméstico) continua sendo considerada não-política, e mesmo não-social… Como se, de um lado, houvesse indivíduos cuja psicologia, comportamento e relações fossem determinadas separadamente da sociedade e relações sociais e pessoais, por meio da ‘livre vontade’ e, por outro, relações sociais, aparentemente assimiladas a abstrações, esvaziem-se de qualquer significado uma vez que elas estão esvaziadas de indivíduos.
A despeito de um desejo declarado de abertura com relação à luta contra o patriarcado dos organizadores destes três dias de discussão, nós experimentamos, no entanto, uma negação da opressão das mulheres e uma estigmatização do movimento feminista não-misto que denuncia essa opressão. Esta foi a motivação para o desafio feminista expresso durante a reunião da plenária na tarde de sábado.
Como isso ocorreu?
Você disse… violência institucional?
Durante o debate sobre “violência institucional na comunidade ativista”, na Sexta, a questão do poder masculino foi abordada bem superficialmente.
Em resposta, diversas intervenções por mulheres tenderam a demonstrar que a ‘liderança militante’ é quase sistematicamente exercida por homens. O problema de poder masculino foi igualmente e abertamente negado (certas pessoas disseram que as mulheres que se manifestavam estavam ‘mudando de assunto’), sustentando-se através de tentativas de justificação, com argumentos como esses a seguir:
– A necessidade de transmitir e/ou compartilhar conhecimento militante e político, implicitamente entendido como possuído, claro, por ativistas ‘treinados’ ou ‘experienciados’, portanto, pelos líderes presentes. Como esses líderes são 99,9% homens, este argumento implica que o conhecimento seria exclusivamente detido pelos homens, enquanto mulheres seriam ‘mais práticas’ (sic). Mas como é que nunca existem ativistas mulheres ‘treinadas’ e ‘experienciadas’?
O conceito de servidão voluntária, que absolve os dominantes (homens, brancos, heteros…) de sua responsabilidade, transferindo-a para @s dominad@s. Assim, a opressão se torna pessoal, psicológica, e, dessa forma, um problema não-social.
Nós podemos observar como, nesta questão da opressão das mulheres, muitos anarquistas defendem que cada indivíduo deva ESTRUTURAR A ELA OU ELE MESM@ fora das relações sociais de gênero. Por outro lado, eles não negam que outras relações sociais definem indivíduos em suas relações um@s com outr@s.
“Eu sou anarquista, logo sou anti-sexista”. Mas que forma toma esta luta anti-sexista? Que demandas são vociferadas mundo afora? Que vigilância demonstramos para com os padrões opressivos dentro dos grupos? E que questionamentos pessoais ela permite? O número mínimo de ações que podem ser organizadas são principalmente reflexivas da esfera pública e nunca são inter-relatadas; elas não integram as formas de opressão prevalente na esfera privada e isso também beneficia homens anarquistas… Isso leva à exclusão do todo-importante conceito feminista ‘o privado é político’.
As noções de sexismo e luta anti-sexista como elas são usadas no movimento anarquista, absolutamente não tomam conta da existência do patriarcado, isto é, uma relação social de dominação (e portanto, de opressão) exercida pelo gênero masculino contra o gênero feminino. Esta visão do sexismo parece limitada à discriminação baseada no gênero, nada mais: no entanto, na sociedade, não há apenas discriminação baseada no gênero, mas também posições sociais assimétricas baseadas no gênero. Nós muhleres e homens não somos assignad@s aos mesmos lugares hierárquicos na sociedade. A forma corrente de anti-sexismo anarquista não é suficiente porque apenas toma em consideração uma parte do problema, e muitas vezes serve para mascarar sua vera fundação. Esta forma de anti-sexismo de fato recusa-se a reconhecer – contrariamente ao feminismo – uma opressão específica de mulheres por homens, uma opressão que difere se as mulheres são lésbicas, bi ou heterossexuais. Este anti-sexismo reduz opressão à alienação, uma que poderia ‘igualitariamente’ ser aplicada a homens e mulheres.
Organização não-mista de mulheres à prova !
Sexta à tarde, tivemos que aguentar respostas hostis ao separatismo durante a projeção do vídeo ‘Crônicas Feministas’ em um cenário não misto. Essas discussões continuaram no dia seguinte durante o debate não-misto de mulheres em anarcofeminismo.
Durante o debate, QUEM ESTAVA ESCREVENDO A HISTÓRIA?
“1968 e depois, trinta anos de movimentos sociais” – Esta discussão ofereceu-nos três ou quatro ‘líderes históricos’, mas nenhuma pessoa para expressar a experiência de um dos movimentos sociais mais importantes daquele período: o movimento de libertação das mulheres. Nós podemos pensar que, mesmo se isso não era intencional, aí ocorreu a reprodução da marginalização das lutas de mulheres nesta programação.
Mas, durante o debate sobre a ordem patriarcal, sábado pela tarde, que as reações anti-feministas foram as mais violentas e provocaram a nossa resposta: do nosso ponto de vista feminista, era impossível ignorar tal backlash 1. O que presenciamos foi em realidade um JULGAMENTO em vez de um debate. Sua vera forma fez deste debate um ato de agressão e de condenação da nossas práticas de luta, viz.:
– o uso de exemplos anedotais para generalizar a questão feminista e as lutas lésbico-feministas;
– homens usando palavras de mulheres opostas às reuniões mistas de modo a dividir-nos mais uma vez, e de maneira a condenar seu anti-feminismo enquanto estabeleciam a eles mesmos em uma posição de árbitro.
Este debate serviu para negar nosso comprometimento e a legitimidade das nossas análises; um desejo de calar-nos estava claramente expresso.
Denunciar e atacar a não-mixticidade de mulheres, como foi feito aqui, era também uma maneira de sugerir que uma mixticidade real existe. Ainda assim, nós acreditamos que a mixticidade é uma ilusão: ou ela é quase não-existente (nos locais de trabalho, na escola desde as primeiras orientações de escolhas, nas organizações políticas, nas uniões…), ou, naquelas raras ocasiões onde ela ocorre, é inequalitária, isto é, uma minoria de homens está ocupando o centro, enquanto mulheres são mantidas na periferia, reduzidas a um papel de espectadoras, um papel de segunda-classe, atada às normas definidas por estes homens e para o poder masculino do qual eles são depositários. Esta primazia a-crítica concedida à mixticidade também nega a necessidade d@ oprimid@ de organizarem-se eles mesmos contra sua opressão e seus opressores… Que @ oprimid@ deveria se tornar as SUJEITAS das suas lutas é contudo um princípio anarquista; muitas de nós achamos impossível e inútil manifestar-nos e tentar justificar algo que não deveria exigir justificação: a maneira como este debate tomou lugar ilustra as relações de poder criadas em um cenário misto, fazendo disto então algo muito melhor que qualquer argumentação.
Homens reclamam de se sentirem excluídos pela não-mixticidade das mulheres, quando dada a oportunidade de lidarem com a questão da mixticidade sob o tema ‘a ordem patriarcal’, eles desviaram o debate dirigindo-o e limitando-o à acusações niveladas à mixidade. Isso bem representa a necessidade de encontros de mulheres não-mistas para REALMENTE trabalhar CONTRA a ordem patriarcal!
Conseqüentemente, nós decidimos em um processo coletivo preparar uma intervenção durante o último debate no sábado sobre ‘o futuro do movimento anarquista’. Para nós esta era a oportunidade de desafiar os poderes aí postos: aqueles dos homens, aqueles dos líderes…
Que futuro anarquista para o movimento anarquista?
Homens convidados a falar foram seguidos um após o outro no podium, formulando versões oficiais da história, políticas e a estratégia de suas organizações… nenhuma única mulher, nenhuma lésbica sequer no horizonte da HIStoria 2…
Nossa primeira ação foram placas dizendo ‘VIOLÊNCIA SEXISTA’ e um pôster questionando ‘É ESTA UMA REUNIÃO NÃO-MISTA?’ junto a outros placares de um humor cáustico porém, realista. Nós queríamos ilustrar, de uma maneira simplificada por razões materiais, uma decodificação simultânea dos pertinentes discursos dominantes e como eles estavam funcionando ali. Um outro cartaz dizendo ‘COM VOCÊ, COM A GENTE’ foi dirigido à crítica das mulheres à não-mixticidade.
A despeito de algumas observações provocadas pela nossa presença (bem eloqüente, enquanto nós permanecíamos em silêncio), o debate foi adiante como se a gente não existisse. NÓS EXPERIENCIAMOS SER TORNADAS INVISÍVEIS ASSIM COMO É A SITUAÇÃO DAS MULHERES, LÉSBICAS E A LUTA.
Nossa segunda ação: mover-nos da periferia para o centro da sala. NÓS QUERÍAMOS TOMAR NOSSO LUGAR NO CENTRO DO ESPAÇO PÚBLICO COMO UMA MANEIRA DE OFENDER. Aderem à nossa iniciativa outras mulheres presentes no salão. Se a gente falava umas entre as outras, isso era para tornar visível o fato de que em ‘geral’, homens falam entre eles mesmos. A tensão cresceu e um homem gritou para a gente: ‘sectárias’, facistas’, ‘gurias de merda’, ‘lésbicas’… Pior, encontramos a nós mesmas sendo acusadas de manipulação por mulheres dentro do nosso grupo, pela então chamada recusa de comunicar-nos e sectarismo. Estes são instrumentos tradicionais de poder, usadas pelos dominantes para manter e reafirmar sua dominação: eles simpesmente usam contra nós a crítica que dirigimos a eles. 3 Maior parte dos homens anarquistas se recusaram a incluírem a eles mesmos no grupo dos opressores, muito embora alguns logo admitiram que esta realidade é o único ponto de partida que podia permitir um questionamento deste papel e o da sua participação na manutenção do patriarcado.
Finalmente, certas pessoas estigmatizaram o nosso então chamado ‘desejo de sabotar o debate’, clamando que sentiam que o debate do futuro do movimento anarquista não podia tomar lugar ‘normalmente’… . É auto-evidente que nós lamentamos que certos outros debates (notadamente aquele sobre o Patriarcado) não podia tampouco tomar lugar ‘normalmente’… E nossa intenção era, notavelmente, despertar a consciência, neste debate, sobre o lugar das lutas feministas no futuro do movimento anarquista. Assim, a nossa intervenção era totalmente relevante para as questões em debate.
Uma profunda ação anarquista
Esta ação era baseada em uma motivação comum, mas seu desenvolvimento foi completamente espontâneo, assim como a escolha das mulheres que se juntaram à nós, e foi inteiramente dependente das reações do público. Isso poderia havê-la feito sair totalmente diferente…
Nossa ação feminista permitiu-nos gerar uma série de questões com relação ao compromisso e práticas anarquistas:
– Não seria a análise da dominação masculina, da opressão das mulheres e da lesbofobia um trabalho individual e coletivo de todos homens e todas mulheres? E qual é a significância das explicações ou justificações serem sistematicamente demandadas das feministas?
– Como podemos refletir sobre a articulação das diferentes lutas quando nenhuma delas é percebida como uma questão ‘específica’? Não apenas recusamos a noção de uma hierarquia de lutas, mas também consideradas essenciais como uma visão transversal da realidade social e política.
– Como percebemos o relacionamento entre as relações sociais e individuais? Que ligações reconhecemos entre o pessoal e o político? Como são as relações coletivas produzidas e reproduzidas no espaço privado ou pessoal? Como pode um indivíduo, um sujeito individual, fazer escolhas em uma sociedade que é construída em categorias e classes desiguais?
E sempre, Feministas, enquanto for necessário sê-lo!
Coletivo de mulheres, feministas e lésbicas envolvidas na ação feministas organizada durante os dias anarquistas de 8 a 10 de Maio em Lyon (França).
De, “Léo Vidal” Data: Sábado, 22 de Agosto de 1998.
NOTAS:
1 Backlash: reação, refluxo, palavra usada para designar as reações aos progressos nas lutas feministas num plano coletivo ou estrutural, por parte das mídias, cultura de massas ou dentro de movimentos e até mesmo novas tendencias no feminismo, como seria o caso do pós-modernismo.
2 HIStória no contexto do texto está sendo usada para referir-se a ‘História dos homens’ ou seja, sua versão, já que “His” em inglês traduz-se por DELE. ‘História dele’. Feministas inventaram o termo ‘Herstory’ em inglês para desconstruir o sexismo da língua ressignificando história como ‘Nossa história’, ‘história dela’ (Her-Story).
3 A tão chamada ‘opressão reversa’
tradução e revisão coletiva online
https://apoiamutua.milharal.org – [email protected]