
Pensar um processo de transformação radical no Brasil a partir de uma perspectiva anarquista exige abandonar a ideia de revolução como um evento único, centralizado e orientado para a tomada do poder estatal. Em um país de dimensão continental, marcado por profundas desigualdades regionais e por uma diversidade cultural intensa, o Estado historicamente se impôs como uma estrutura distante, frequentemente violenta e incapaz de representar a multiplicidade de formas de vida existentes no território. Essa distância não apenas produziu exclusão, como também estimulou a emergência recorrente de formas autônomas de organização que se desenvolvem à margem — ou em confronto direto — com a ordem instituída.
É possível entender que a diversidade brasileira seja menos um obstáculo e passe a ser um elemento fundamental para qualquer análise libertária. Comunidades indígenas, quilombolas, populações ribeirinhas, periferias urbanas e coletivos informais desenvolveram, ao longo da história, práticas baseadas na ajuda mútua, na autonomia e na autogestão, ainda que raramente nomeadas como anarquistas, e isso é algo importante, porque as práticas são mais importantes que os nomes que dão. Experiências como os quilombos, Canudos ou as greves operárias do início do século XX revelam que, sempre que grupos sociais buscaram organizar a vida fora da lógica estatal e capitalista, encontraram como resposta a repressão, o apagamento histórico ou a cooptação (quem controla a narrativa temporal, dirige o roteiro que quer seguir e determina qual fonte é importante ou não). Ainda assim, essas experiências deixaram rastros e sinais que continuam a informar práticas contemporâneas de resistência.
A comparação com outras experiências ajuda a orientar esse percurso.
O zapatismo, em Chiapas, demonstrou que é possível transformar momentos de ruptura em formas relativamente duráveis de autonomia, ancoradas na organização comunitária e no enraizamento cultural. Em Rojava, o confederalismo democrático apontou caminhos para a articulação de múltiplas autonomias locais sem recorrer à centralização estatal. Já a Revolução Espanhola de 1936 evidenciou tanto o potencial quanto a vulnerabilidade de processos libertários quando estes se tornam amplos e visíveis demais, tornando-se alvos prioritários de forças autoritárias de todos os lados, tanto das forças fascistas como das forças totalitárias stalinistas. No Brasil, onde a violência estrutural e a fragmentação territorial são ainda mais intensas, essas experiências funcionam menos como modelos e mais como espelhos críticos.
É nesse ponto que o conceito de Zonas Autônomas Temporárias se torna particularmente relevante. Em vez de buscar a consolidação imediata de territórios autônomos permanentes — frequentemente inviáveis no contexto brasileiro —, muitas práticas de resistência operam por meio de brechas momentâneas no controle do Estado e do capital. Ocupações, levantes urbanos, redes de solidariedade, festas autogeridas, mutirões comunitários e explosões de protesto suspendem, ainda que por um tempo limitado, a normalidade imposta, permitindo a experimentação de outras formas de relação social. Essas zonas não desaparecem sem deixar marcas: elas produzem memória, aprendizado e afetos que reaparecem em ciclos posteriores de mobilização.
Ao mesmo tempo, a existência de territórios indígenas, quilombos contemporâneos e comunidades tradicionais revela que a autonomia, embora constantemente ameaçada, pode adquirir certa duração quando sustentada por vínculos históricos, culturais e territoriais profundos. Aqui em Pindorama, a transformação social tende a oscilar entre essas duas formas: a autonomia fugaz das Zonas Autônomas Temporárias e a resistência prolongada, porém sitiada, de autonomias duráveis. A força do processo não está na estabilidade absoluta, mas na capacidade de transitar entre essas formas com flexibilidade, adaptando-se às condições concretas de cada contexto.
Manter sempre em mente: Não explorar, não ser explorada; Não oprimir, não ser oprimida!
Dessa perspectiva, a revolução deixa de ser um horizonte distante ou um momento de ruptura total e passa a ser compreendida como um processo cotidiano, flexibilizado, fragmentado e plural. Ela acontece sempre que comunidades constroem, mesmo que provisoriamente, modos de vida que escapam à lógica da dominação e afirmam a possibilidade de autogoverno. Em um país continental como o Brasil, a emancipação dificilmente será total ou definitiva, mas pode se manifestar nas fendas do poder, nos interstícios onde práticas autônomas se conectam em redes de solidariedade e resistência. A transformação, assim, não se anuncia como um evento final, mas se inscreve na continuidade das lutas, na persistência das brechas e na reinvenção constante da liberdade.
Na luta somos pessoas dignas e livres!





