
Por Sementes Insubmissas
Sim, a teoria importa. Pensar é urgente. Mas pensar não é empilhar citações nem sacralizar bibliografias. Não é repetir jargões da cultura acadêmica para parecer inteligente. E, mais ainda: pensar nunca foi — nem deveria ser — privilégio da academia. A reflexão nasce do mundo, não das atas. A teoria se escreve com suor, tropeço e experimento. E, quando esquecemos isso, até o anarquismo se torna burocrático.
Há uma distorção em curso — e ela é grave: até o anarquismo tem supervalorizado a escolarização. Como se só fosse legítimo aquilo que já foi validado pela universidade. Como se só fosse anarquista quem fala difícil. Isso é o oposto do que se busca. Para ser anarquista, não é preciso ter diploma — é preciso ter disposição para viver sem amos. É preciso sentir na pele, e não apenas citar autores brilhantes. Quem constrói luta coletiva pode ser anarquista, mesmo sem nunca ter lido Bakunin.
A racionalidade acadêmica ocupou até os espaços libertários. Hoje, há quem exija referência para a raiva e bibliografia para a solidariedade. Teoriza-se tanto a prática que ela simplesmente não acontece. Fala-se de ação direta com vocabulário de defesa de tese. O que era para ser um corpo em movimento virou ritual de discurso e postura acadêmica.
É preciso dizer em alto e bom som: a teoria viva nasce da prática. Da tentativa, da contradição, da urgência de viver com coerência. E, sinceramente, está fazendo falta mais livro escrito por quem vive. Por quem tenta e erra. Por quem faz da vida seu laboratório. Queremos mais textos com calo, com gíria, com vísceras. Menos relatório, mais relato. Menos citação, mais chão.
A cultura acadêmica se tornou um problema sério. Já tem acadêmico que conceituou isso como “paralisia reflexiva”. Tem gente que fala tanto sobre mudar o mundo que não tem tempo de pegar numa enxada, reciclar numa feira, colar um lambe. Essa cultura em que as palavras não precisam ter conexão com as ações não nos serve. Não é antiautoritária — é decorativa.
Saberes não legitimados pela academia continuam sendo saberes. As sabedorias ancestrais e populares, muitas vezes oralizadas, pensam o mundo com o corpo. Negar isso é erguer muros onde caberiam fogueiras. É esquecer que há pensamento na ação de viver e na palavra que não precisa de assinatura. É cultuar um conhecimento moldado por estruturas hierárquicas, que só ganha valor se passar por bancas ou pelo crivo de avaliadores de revistas.
O anarquismo não precisa de papers. Precisa de corpo, de ação, de erro. Precisa de gente que arrisque, que escute o mundo fora dos muros acadêmicos. Pensar, sim — mas pensar como quem anda. Como quem dança. Como quem cai e levanta. Como quem não pede permissão para criar.
Se não rompemos com essa lógica, se não descolonizamos o pensamento anarquista da cultura acadêmica que o aprisiona, corremos o risco de nos tornar aquilo que juramos combater: uma elite do saber que fala de liberdade enquanto vive trancada em seminários.
O pensamento deve ser ferramenta, não ornamento. E o anarquismo, nunca precisou — nem precisa — da validação da cultura autoritária para existir. Antes de ser discurso, ele é vida em estado de insubmissão.
— Sementes Insubmissas
Sementes Insubmissas é um coletivo sem donxs, fronteiras ou chancela. Nasce do desejo de aprender além dos muros das instituições escolarizadoras, afirmando que saber não precisa de diploma para existir. Aqui, a teoria brota da prática, do corpo em movimento, do erro, do cuidado e da partilha.