Existem várias discussões se a escravidão posta a termo de forma oficial em 1888 teria sido obra magnânima do Estado, ou fruto das ações de repulsa continuadas da sociedade civil, que ao longo dos séculos se mobilizara contra essa nefasta e abjeta pratica de opressão. Particularmente optamos pela segunda opção, ou seja, somente a pressão da sociedade é que possibilitou o fim da escravidão como instituição a qual possuiu todo um arcabouço jurídico de legitimidade.
Precedendo o movimento antiescravagista tinha-se a ação concreta dos próprios escravos, que incansavelmente lutaram contra sua situação, fugando das fazendas e trabalhos urbanos, organizando motins, formando quilombos, comprando alforrias, reivindicando melhorias no seio das fazendas e até optando por tirar-se a vida, a submeter-se ao trabalho incessante, a fragmentação das famílias, aos castigos macabros engendrados pelos proprietários.
Na atualidade observamos que a escravidão deixou de existir somente como instituição oficial do Estado, permanecendo subliminarmente em todos os lugares. O ato de 13 de maio, não passou de ato demagógico e como forma orquestrada de por fim – esvaziar – aos movimentos sociais que organizados lutavam pela emancipação social e melhorias nas condições de vida. A esse ato maquinado no seio das elites escravocratas, observamos a conjunção de outras ações verificadas no período, ou seja, a importação de milhões de braços definidos como imigrantes, em sua maioria europeus, brancos e majoritariamente católicos, que forçosamente “aceitavam” salários miseráveis quer na incipiente indústria e nas extensas fazendas.
Outro ato desviante foi à instauração da República, a qual com braço de ferro desbaratou acintosamente os movimentos sociais urbanos e rurais, construídos a margem do Estado, portanto livres de suas mazelas. É ação continua do Partido Republicano a cooptação das lideranças antiescravistas com cargos na máquina pública, indicação para ocupar assentos nos legislativos e em paralelo a expulsão das fileiras do Partido daqueles que queriam uma República Cidadã.
Ao longo de toda a República Velha os escabrosos casos de escravidão foram denunciados pelos jornais operários e mesmo por muitos segmentos liberais, que faziam oposição, mesmo que tímida ao republicanismo dos coronéis. A solução encontrada para barrar os gritos dos que protestavam contra esse estado de coisa, foi à utilização continua do Estado de Sitio, as expulsões dos indesejáveis, mesmo que brasileiros natos e o desterro para Campos de Concentração, utilizando-se para isso de ilhas e florestas. Os exemplos mais lembrados são o da Sibéria Brasileira no então território do Acre e o macabro Campo de Concentração do Oiapoque (Clevelândia).
Na Ditadura do Estado Novo se consolida o mito de que no Brasil a escravidão deixará de existir em 1888, sendo que aos que insistiam em denunciar os fatos se lhes acrescentava o adjetivo de detratores da brasilidade para os quais o tratamento foi singelo: cadeia, desaparecimento, monitoramento da DOPS e censura da DIP. Só para lembrar que com o arbítrio da “Redentora” – 1964/1985 – a alegoria se conserva.
Na atualidade – 2013 – observamos revoltados que a pratica nefasta da escravidão se mantém como também aberrativamente se espraia quer no meio rural quer no meio urbano. Embora toda a demagogia do suposto combate a escravidão propalada pelo Estado, observamos estarrecidos que o judiciário legitima a pratica descriminalizando os ‘empreendedores’ que se servem dessa pratica genocida.
“Não raro, os escravagistas pós-modernos, que ditam as regras de um mercado nefasto, saem ilesos nas ações judiciais que lhes são movidas”. Mais das vezes, o Judiciário afasta a responsabilidade jurídica daqueles que contribuem diretamente para o ilícito, seja por desconhecer o conceito contemporâneo de trabalho escravo, seja por aceitar as escusas defensivas das grandes grifes, que possuem notória capacidade de mobilização político-jurídica em prol dos seus interesses e invariavelmente alegam desconhecimento do fato. Seja, ainda, por pura ideologia.
Foi o que ocorreu em recente decisão do TRT da 2ª Região (São Paulo/SP) que, em sede de mandado de segurança, utilizado como via de recorribilidade interlocutória, já prejulgou o caso posto e afastou a responsabilidade da grande grife. (Justiça cassa bloqueio de bens em caso de escravidão envolvendo empresa dona da M.Officer. TRT cancela bloqueio de bens e determina que empresa deva ser ressarcida do pagamento de verbas rescisórias para resgatados) Os fundamentos não são novos: os trabalhadores resgatados possuíam “empresa regularmente constituída”; inexistência “de qualquer forma de intimidação visando restringir a liberdade de locomoção”; e, mais grave, nas condições a que estavam submetidas às vítimas, “vive grande parte da população brasileira”. Como se vê, a decisão mostra-se conservadora sob os aspectos jurídico e social”. http://reporterbrasil.org.br/2013/11/os-grilhoes-ocultos-da-elite-brasileira/
A diferença entre 1888 e 2013 ao contrário do que propalam os áulicos do Estado é inexistente e a escravidão persiste com respaldo dos entes públicos que a descriminalizam. Milhões de indivíduos são explorados para que alguns tenham seus lucros assegurados, não interessando as condições precárias que os explorados se encontram. O que importa é que trabalhem incessantemente, sem direito social algum, e sobremodo que não reclamem e muito menos se organizem contra esses disparates.
A nosso ver é ilusório esperar qualquer atitude condescendente do Estado, dos exploradores, dos Partidos Políticos, das Igrejas, que só fazem frenar as lutas sociais emancipatórias. Precisamos manter a luta antiescravista dos momentos pretéritos, tanto no seio dos explorados quanto no da sociedade civil. São necessários múltiplos movimentos, todos necessariamente horizontais, sem comando ou pretensas lideranças. Embora singelas nossas atitudes de denuncia precisam ser constantes, com o propósito claro de desmascarar os escravocratas e seus protetores.
O Estado maquiavelicamente vende a ilusão de que combate a escravidão através de ineficazes ações de fiscalização, as quais são torpedeadas em regra por um rol de entes públicos que tudo fazem para que não se obtenha qualquer resultado. Nos casos em que não é possível procrastinar a ação, resta aos escravocratas a trincheira judicial na qual o cipoal de leis aquilhadas no apartheid social os escuda.
O resultado dessas ações de fingimento sempre é favorável aos exploradores. “A Justiça concedeu nesta sexta-feira liminar que determina a retirada da Cosan da “lista suja” de trabalho escravo elaborada pelo Ministério do Trabalho”. Por isso não nos iludamos, somente com nossa ação direta de denuncia e organização é que poderemos por fim a escravidão mesmo ela estando maquiada e vendida pelos meios de comunicação como inexistente.
Nós por certo continuaremos sendo taxados de delirantes diante do fato de denunciarmos todas as formas de exploração e nesse particular a mais abjeta delas que é a escravidão. Nesse rol seguiremos recorrentemente rotulados de agitadores, baderneiros, maconheiros ou vândalos, quando na real o que existe é a tentativa fascista de desconstruir os fatos e encobrir a situação da continuidade da escravidão no Brasil.
P. Anarchista
Caxias do Sul, dezembro de 2013.