
Por Chiara Bottici
Alguns argumentaram que o casamento entre marxismo e feminismo terminou em um casamento infeliz: ao reduzir o problema da opressão das mulheres ao único fator da exploração econômica, o marxismo corre o risco de dominar o feminismo precisamente da mesma forma que os homens em uma sociedade patriarcal dominam as mulheres (Sargent 1981). A opressão desta última precisa levar em conta uma multiplicidade de fatores, cada um com sua própria autonomia, sem tentar reduzi-los a uma fonte que explica tudo — seja a extração de mais-valia no local de trabalho ou trabalho paralelo não remunerado no lar. Parece haver algo intrinsecamente multifacetado na opressão das mulheres — tanto que os programas de estudos de gênero e mulheres são todos, inevitavelmente, interdisciplinares.
A questão então surge se o feminismo não poderia encontrar um parceiro melhor no anarquismo. Apesar do fato de que o anarquismo e o marxismo frequentemente seguiram o mesmo caminho e até convergiram em lutas de trabalhadores, a principal diferença entre eles é que os pensadores anarquistas trabalham com uma noção mais variada de dominação que enfatiza a existência de formas de exploração que não podem ser reduzidas a fatores econômicos — sejam eles políticos, culturais ou, devemos acrescentar, sexuais. Daí também seu casamento mais feliz com o feminismo: se a relação entre o marxismo e o feminismo tem sido caracterizada, no geral, como uma ligação perigosa (Arruzza 2010), que reproduziu a mesma lógica de dominação ocorrendo entre os dois sexos, então a relação entre feminismo e anarquismo parece ser um encontro muito mais convivial. Historicamente, os dois convergiram tão frequentemente que alguns argumentaram que o anarquismo é, por definição, feminismo (Kornegger “Anarchism: the feminist connection” em R. Graham, ed., 2007). A questão não é simplesmente registrar que, de Michail Bakunin a Emma Goldman , e com a única (possível) exceção de Proudhon , anarquismo e feminismo frequentemente andavam de mãos dadas. Esse fato histórico sinaliza uma afinidade teórica mais profunda. Você pode ser marxista sem ser feminista, mas não pode ser anarquista sem ser feminista ao mesmo tempo. Por que não?

Capa do livro Imaginal Politics: Images Beyond Imagination and the Imaginary de Chiara Bottici
Se o anarquismo é uma filosofia que se opõe a todas as hierarquias, incluindo aquelas que não podem ser reduzidas à exploração econômica, ele tem que se opor à submissão das mulheres também, pois de outra forma ele é incoerente com seus próprios princípios. A maioria dos pensadores anarquistas trabalha com uma concepção de liberdade que é melhor caracterizada como uma “liberdade de iguais” (Bottici 2014), segundo a qual eu não posso ser livre a menos que todos os outros sejam igualmente livres, porque mesmo se eu for o mestre, a relação de dominação da qual participo me escravizará tanto quanto a própria escrava — é o paradoxo da dominação que até mesmo um filósofo como Rousseau, que não era nem um anarquista autodeclarado nem um feminista, enfatizou fortemente.
Mas se eu não posso ser livre a menos que eu viva cercada por pessoas que são igualmente livres, isto é, a menos que eu viva em uma sociedade livre, então a submissão das mulheres não pode ser reduzida a algo que diz respeito apenas a uma parte da sociedade: uma sociedade patriarcal será fundamentalmente opressiva para ambos os sexos, precisamente porque eu não posso ser livre por mim mesma. E isso é algo que tendemos a esquecer: o patriarcado é opressivo para todos, não apenas para as mulheres.
Então, se é verdade que o anarquismo tem que ser, por definição, feminismo, o oposto se aplica? Pode haver feministas que não sejam anarquistas? Claramente, historicamente falando, muitos movimentos feministas não eram anarquistas. No entanto, algumas feministas alegaram que o feminismo, em particular a segunda onda do feminismo da década de 1970, era anarquista em sua estrutura e aspirações profundas. De acordo com Peggy Kornegger (2007), por exemplo, feministas radicais desse período eram anarquistas inconscientes tanto em suas teorias quanto em suas práticas. A estrutura dos grupos de mulheres (por exemplo, grupos de conscientização), com sua ênfase em pequenos grupos como a unidade organizacional básica, no pessoal que é político e na ação direta espontânea, tinha uma semelhança impressionante com formas tipicamente anarquistas de organização (ibid., 494).
Mas ainda mais impressionante é a convergência conceitual com a concepção de liberdade que descrevi acima. Por exemplo, Kornegger afirma que “a libertação não é uma experiência insular” porque ela pode ocorrer apenas em conjunto com todos os outros seres humanos (ibid., 496), o que, novamente, significa que a liberdade não pode deixar de ser uma liberdade de iguais. No entanto, isso também implica que não se pode lutar contra o patriarcado sem lutar contra todas as outras formas de hierarquia, sejam elas econômicas ou políticas. Como Kornegger (2007:493) novamente colocou, “feminismo não significa poder corporativo feminino ou uma mulher presidente: significa nenhum poder corporativo e nenhum presidente”.

Anarco-feministas em um protesto e manifestação antiglobalização citam Emma Goldman
Em outras palavras, feminismo não significa simplesmente que as mulheres devem tomar o lugar ocupado pelos homens (o que seria uma forma bastante fálica de feminismo); em vez disso, as mulheres devem lutar para subverter radicalmente a lógica da dominação onde sexismo, racismo, exploração econômica e opressão política reforçam-se reciprocamente, embora com diferentes formas e modalidades em diferentes contextos. Isso se aplica ainda mais hoje, em um mundo globalizado onde diferentes formas de opressão e exploração, sejam baseadas em gênero, sexo, raça ou classe, sustentam-se mutuamente. Talvez a maior contribuição do feminismo de terceira onda seja que ele apontou para a necessidade de uma análise multifacetada da dominação, com sua ênfase no pós-colonialismo e na interseccionalidade. Se por feminismo entendermos simplesmente a luta pela igualdade formal entre homens e mulheres, corremos o risco de criar novas formas de opressão. Corremos o risco de que a igualdade entre homens e mulheres signifique apenas que as mulheres devem assumir posições antes reservadas aos homens burgueses brancos, reforçando ainda mais os mecanismos de opressão em vez de subvertê-los. Por exemplo, se tomarmos a emancipação das mulheres brancas como significando simplesmente entrar na esfera pública em pé de igualdade com os homens, isso, por sua vez, pode implicar que outra pessoa tenha que substituir essas mulheres em suas casas. Mas para a mulher imigrante que substitui a dona de casa branca no fornecimento de cuidados domésticos, isso não é libertação: ela meramente sai de sua casa para entrar em outra como trabalhadora assalariada. Na situação atual, a emancipação de algumas mulheres (brancas) corre o risco direto de significar a opressão de outras mulheres (imigrantes, negras ou sulistas), se o feminismo não visar dissolver todas as formas de hierarquia, estejam elas entrincheiradas na opressão de gênero, classe ou raça.
Para concluir, talvez o feminismo não tenha sido historicamente sempre anarquista, mas deveria ser porque deveria ter como objetivo subverter todas as formas de dominação — sejam elas sexistas, econômicas e políticas. Feminismo, hoje mais do que no passado, não pode significar apenas mulheres governantes ou mulheres capitalistas: significa nenhuma governante e nenhum capitalismo.
Título: Anarquismo e feminismo: em direção a um casamento feliz?
Autora: Chiara Bottici
Tópicos: anarcha-feminismo , anarquismo , feminismo
Data: 8 de julho de 2014
Fonte: Recuperado em 8 de julho de 2014 de http://www.publicseminar.org/2014/07/anarchism-and-feminism-toward-a-happy-marriage/