
Por Matthew Hall
Em pleno antropoceno
Em pleno Antropoceno (o período antropocêntrico na Terra), proliferam as proclamações de catástrofe ambiental (Crutzen e Stoermer 2000). As demandas humanas sobre os recursos vivos do planeta, nossas “pegadas ecológicas”, excedem agora a capacidade regenerativa do planeta em cerca de 30% (WWF 2008, p. 2). Essa avaliação devastadora é seguida por previsões de que até 30% das espécies vegetais (SCBD 2002) e 25% dos mamíferos estão ameaçados de extinção (principalmente devido à perda de habitat e à superexploração; IUCN 2008), e que mais de 30% das espécies correm risco de extinção devido às mudanças climáticas antropogênicas (Thomas et al . 2004). Apesar da ameaça à integridade da biosfera, a discrepância entre nossas demandas ecológicas (de recursos) e a realidade ecológica está aumentando (WWF 2008). Quanto maior a sobrecarga, maior a degradação ambiental, maior a perda de diversidade e complexidade, maior o risco de colapso do ecossistema global. O desmatamento em larga escala, o rápido esgotamento da vida marinha, a incapacidade de controlar as emissões de CO2 e a falta de controle da população humana e do consumo estão empurrando (ou já empurraram) a biosfera para um estado ecológico precário. A perspectiva desse colapso está cada vez mais associada a noções de escassez, instabilidade, incerteza, desordem e caos, tanto ecológica quanto socialmente (Diamond 2005).
Filósofos ambientais afirmam que as ordenações hierárquicas do mundo natural têm desempenhado um papel fundamental no projeto humano contínuo de dominar a natureza (Warren 2000, Plumwood 2002, Hall 2011). As hierarquias filosóficas do mundo natural são frequentemente antropocêntricas, com os humanos considerados superiores por possuírem características “exclusivamente humanas”. Os não humanos são situados abaixo dos humanos porque “carecem” de tais atributos. Um exemplo da antiguidade é a “grande cadeia do ser”. Os humanos racionais estão no topo da cadeia, seguidos pelos animais incapazes de raciocinar e pelas plantas insensíveis (Hall 2011). Uma característica dessas hierarquias é a associação com a ideia de que os não humanos são meros recursos para os humanos. Em uma posição inferior na hierarquia da mente e da presença, presume-se que plantas e animais não tenham propósito próprio e, portanto, sua existência é totalmente subvertida para fins humanos. Isso reforça o dualismo binário entre humanos e natureza – um existindo unicamente como instrumento do outro (Plumwood 2002). É também uma característica dessas hierarquias que a “superioridade” humana seja baseada em uma avaliação parcial feita por seres humanos (Taylor 1981). Os humanos são superiores apenas porque se consideram superiores.
Os anarquistas rejeitam a autoridade imposta, a hierarquia e a dominação, buscando “estabelecer uma sociedade descentralizada e autorregulada, constituída por uma federação de associações voluntárias de indivíduos livres e iguais” (Marshall 2008, p. 3). O anarquismo, portanto, se apresenta como uma filosofia política promissora para minar a hierarquia humana e a dominação sobre o mundo natural, além de explorar a exclusão e a subjugação do não humano.
Começo com uma análise dos princípios fundamentais do anarquismo, sob a perspectiva de dois pensadores anarquistas essenciais: Kropotkin e Bakunin. A partir dessa base, examino uma breve seleção de escritos anarquistas importantes relacionados às relações entre humanos e natureza. Tendo como pano de fundo as afirmações de Brian Morris de que o anarquismo possui uma atitude inerentemente ecológica, apresento um panorama rápido da crescente literatura ecoanarquista. Utilizando a obra ecofeminista de Val Plumwood sobre dualismos e hierarquia como base, analiso a natureza das interações entre humanos e não humanos nos escritos ecoanarquistas. Em conclusão, defendo que se deva dar maior ênfase à interação humana com seres não humanos e sugiro algumas estratégias para a implementação de relações não hierárquicas.
Anarquismo: autoridade, hierarquia e poder
A abrangente história do anarquismo de Peter Marshall (2008) deixa claro que não existe uma posição anarquista singular sobre questões políticas, sociais ou ambientais. Como se pode esperar de uma tradição de política radical que rejeita autoridades opressoras e celebra a liberdade do indivíduo, o anarquismo é multifacetado. É uma coleção de ideias, argumentos, teorias e chamados à ação que se sobrepõem, concordam e entram em conflito. Mas, nessa diversidade do pensamento anarquista, existe uma unidade de propósito. Considerando o anarquismo como um modo de vida, uma atitude, bem como uma filosofia social, Marshall (2008, p. 3) reúne algumas das preocupações comuns dos anarquistas:
Todos os anarquistas rejeitam a legitimidade do governo externo e do Estado, e condenam a autoridade política imposta, a hierarquia e a dominação. Buscam estabelecer a condição da anarquia, ou seja, uma sociedade descentralizada e autorregulada, constituída por uma federação de associações voluntárias de indivíduos livres e iguais. O objetivo final da anarquia é criar uma sociedade livre que permita a todos os seres humanos realizar seu pleno potencial.
Caracterizado como um “protesto moral contra a opressão e a injustiça… entre aqueles que queriam governar e aqueles que se recusam a ser governados” (Marshall 2008, p. 3), o anarquismo, enquanto tradição política, direcionou grande parte de sua energia para os problemas do Estado. Em sua obra seminal , O Estado , o influente pensador anarquista Peter Kropotkin (1969, p. 10) caracterizou o Estado como “todo um mecanismo de legislação e policiamento… para submeter algumas classes à dominação de outras”. O Estado deve ser rejeitado por causa dessa dominação e da concentração territorial do poder, ” bem como pela concentração de muitas funções da vida das sociedades nas mãos de poucos ” (Kropotkin 1969, p. 10, grifo meu). Kropotkin via o Estado como uma entidade monolítica que restringia a liberdade dos indivíduos e das comunidades de se autodeterminarem e que, efetivamente, se infiltrava e monopolizava toda a atividade humana. Essa rejeição de um Estado opressor está em consonância com outro influente pensador anarquista, Mikhail Bakunin, que escreveu que “O Estado denota violência, opressão, exploração e injustiça…” (Maximoff 1953, p. 224). Bakunin considerava o Estado uma personificação da violência e da dominação; uma “negação da humanidade”, não apenas por causa da violência estatal e do poder concentrado, mas também por sua oposição direta à liberdade autodeterminada e à solidariedade entre os seres humanos.
Entendendo o poder como “relações de força” ou a capacidade de impor obediência, o poder se materializa e se cristaliza “no aparato estatal, na formulação da lei, nas diversas hegemonias sociais” (Foucault 1990, pp. 92-93). Assim como Foucault, os pensadores anarquistas reconhecem que “o poder está em toda parte”, mas concentram suas críticas no poder político e social que utiliza a força e a coerção para executar ações contra a vontade de outros. Fundamentalmente, Bakunin rejeitou tal concentração de poder devido à sua capacidade de corromper. Em seu breve ensaio “O Poder Corrompe os Melhores”, Bakunin (1867) escreve que “o poder e o hábito de comandar tornam-se, mesmo para os homens mais inteligentes e virtuosos, uma fonte de aberração, tanto intelectual quanto moral”. Nessa análise do poder, Marshall (2008, p. 45) comenta que, para os anarquistas em geral, “a consciência da natureza corruptora do poder é a base de sua crítica ao poder concentrado e de sua relutância em ceder qualquer poder a líderes e governantes”. Os anarquistas rejeitam o poder político e social devido à sua capacidade de corromper. Através do uso da força e da coerção para executar ações contra a vontade de outros, o poder “destrói tanto o executor quanto a vítima do poder” (Marshall, 2008, p. 45). O abuso do poder coercitivo também é criticado porque pode levar à dominação, que, no sentido foucaultiano, é um estado de subjugação completa no qual toda resistência é inviabilizada (Foucault, 1988).
Além dos problemas de poder, o Estado e seu governo são rejeitados devido às suspeitas anarquistas em relação à autoridade presumida. Marshall observa que, em contraste com o poder como a capacidade de compelir a ação, a autoridade é a presunção do direito de comandar e de que esses comandos sejam obedecidos. Além de sua base presumida, a autoridade que emite ordens (na maioria das vezes em termos de leis) é rejeitada pelos anarquistas porque é a base real da desordem na sociedade. Em “Da Ordem”, Kropotkin observa que a “ordem” é estabelecida pela autoridade e pela força, mas que essa “ordem” resulta na dominação da maioria por uma minoria e na servidão das massas.
A ordem é uma minoria infinitesimal elevada a posições de poder, que por essa razão se impõe à maioria e que cria filhos para ocuparem posteriormente as mesmas posições, de modo a manter os mesmos privilégios por meio de artimanhas, corrupção, violência e carnificina.
A ordem é a guerra contínua do homem contra o homem…
A ordem é escravidão, o pensamento acorrentado, a degradação da raça humana mantida pela espada e pelo chicote. (Kropotkin 1890)
Nesses ataques resolutos à ordem hierárquica estabelecida pela autoridade presumida, Kropotkin considera a ordem estabelecida como desordem, pois se trata de um estado de profunda desarmonia que, em última análise, causa atividades criminosas, violentas e destrutivas na sociedade (Kropotkin, s.d.). Assim, Kropotkin contrapõe essa (des)ordem à “desordem” da anarquia. O que “eles” chamam de desordem:
É a revolta do povo contra essa ordem vergonhosa, rompendo seus grilhões, quebrando suas correntes e caminhando rumo a um futuro melhor.
É a rebelião do pensamento na véspera da revolução; é a subversão de hipóteses sancionadas por séculos imutáveis…
A desordem é a abolição da antiga escravidão… (Kropotkin s.d.)
Embora a anarquia seja frequentemente associada negativamente à desordem e ao caos, o anarquismo, como uma ampla postura social e política, preocupa-se com a rejeição da dominação e o estabelecimento de uma sociedade justa, livre e igualitária. Nessa luta, as posições anarquistas fundamentais (propostas por Kropotkin e Bakunin e compartilhadas pela maioria dos anarquistas) podem ser resumidas brevemente da seguinte forma:
- Recusando o Estado e o governo imposto;
- condenando todas as relações de poder impostas; e
- Rejeitando a legitimidade da autoridade e da hierarquia – que são vistas como meios de dominação.
Em vez de uma autoridade política centralizada, os anarquistas defendem a descentralização (e a localização) do poder para que as pessoas possam se autogovernar de uma forma que permita a liberdade para todos.
Anarquismo com orientação ecológica
Apesar da rejeição completa do poder centralizado, da hierarquia e da dominação no âmbito da sociedade humana, o anarquismo historicamente apresentou relações de poder mais ambíguas com o mundo natural. Bakunin (Maximoff 1953, pp. 88, 90) enfatizou a luta perpétua da humanidade contra a natureza para transcender a pobreza: “O homem… pode e deve conquistar e dominar este mundo externo. Ele, por sua vez, deve subjugá-lo e arrancar dele sua liberdade e humanidade”. Embora reconhecesse que os humanos são “parte da natureza”, Bakunin enfatizou a singularidade e a separação da humanidade como a única espécie capaz de autodeterminação consciente. Os outros componentes do mundo natural eram incapazes de tal ação. Aos olhos de Bakunin, essa liberdade humana autoconsciente deveria ser direcionada ao domínio da natureza, sacrificando a liberdade da natureza pela liberdade da humanidade.
Uma ambiguidade semelhante existe nos escritos de Kropotkin. Para criar um mundo civilizado, Kropotkin retrata o mundo natural como algo com o qual a humanidade precisa lidar, combater e colonizar. Ele argumenta que a humanidade já fez isso no passado e, portanto, deve continuar a fazê-lo. Essa conquista é o modelo de Kropotkin para as relações entre humanos e natureza. Em A Conquista do Pão, Kropotkin (1926, p. 4) exalta a paisagem antropogênica como superior, com seres não humanos domesticados e preferíveis a seus parentes selvagens: “As plantas selvagens, que não produziam nada além de bagas acre ou raízes intragáveis, foram transformadas por gerações de cultivo em vegetais suculentos ou árvores cobertas de frutos deliciosos”. Nessa perspectiva, o mundo natural é retratado como passivo e mesquinho. Sem vontade própria e propósito, ele é aprimorado ao ser feito para servir aos fins humanos. Essa visão se fundamenta em uma concepção mecanicista do mundo natural, na qual Kropotkin baseou sua ideia de anarquismo (Marshall 2008, p. 318).
Contudo, tal como Bakunin, Kropotkin também atribui grande valor à natureza não humana. Em particular, Kropotkin é famoso pela sua visão da sociabilidade e da cooperação ativa no mundo natural. Ao escrever que “O homem não criou a sociedade, a sociedade existia antes do homem” (1902), ele alude à existência de sociedade no reino animal, uma organização social caracterizada mais pela ajuda mútua e reciprocidade do que pela luta e competição darwinianas. Como baseou a sua ideia de uma organização social anarquista nesses princípios, pode-se argumentar que Kropotkin valorizava muito essas sociedades não humanas. Ao inspirar-se diretamente no reino animal, ele também posicionou a humanidade como outra espécie animal, como parte da natureza.
De 1906 a 1917 (juntamente com Alexander Berkmann), a pioneira anarquista Emma Goldman publicou a revista Mother Earth , incluindo trabalhos de autores como Thoreau (uma inspiração para muitos ecoanarquistas como Zerzan), que resistiam ao materialismo, defendiam a natureza selvagem e tendiam ao vegetarianismo. Goldman (2005, p. 13) não se preocupa excessivamente com a relação entre a humanidade e o mundo natural, mas em Anarquismo e Outros Ensaios afirma que “o anarquismo é, portanto, o mestre da unidade da vida; não apenas na natureza, mas no homem”. Nessa linha, influenciada pela obra de Thoreau e contemporâneos como Whitman, Goldman afirma uma comunalidade e unidade em toda a vida, tanto humana quanto não humana.
Mais problemática em sua abordagem ao mundo natural é a do anarquista individualista Max Stirner (1982, p. 205), que não reconhecia “nenhuma outra fonte de direito senão eu, nem Deus, nem o Estado, nem a natureza, nem mesmo o próprio homem”. Para Stirner, a humanidade não tem obrigação de ser ética, muito menos em relação ao mundo natural. O poder sobre os outros (sejam humanos ou não humanos) determina a conduta correta e, por extensão, os mais poderosos têm direito à sua sorte. O poder possibilita a posse, que pode ser igualmente de um objeto, de um semelhante humano ou de um animal. A visão de Stirner sobre o individualismo humano ecoa a obra de Hobbes, cuja sociedade atomística foi criticada por promover a desconexão social, tanto dentro da humanidade quanto entre os humanos e o mundo natural em geral. Contudo, em “
O Ego e o Seu Próprio”, Stirner (1982, p. 296) expressa brevemente solidariedade e conexão entre si e os não humanos: “Eu canto como o pássaro canta. Aquele que pousa no galho.”
Apesar dessa ambiguidade histórica, em sua coletânea de ensaios Ecologia e Anarquismo (1996), Brian Morris considera que o anarquismo possui uma atitude ecológica. Morris encontra semelhanças entre a teoria anarquista e a visão ecológica de naturalistas como Seton e Muir e de ecologistas como Tansley e Elton. Ele vincula a teoria anarquista à preocupação ambiental, referindo-se aos princípios da descentralização, da organização social heterárquica e da interdependência, que considera ideias-chave no movimento ecológico. Como essas ideias ecológicas estão presentes no anarquismo, ele afirma que o anarquismo é ecologicamente orientado. Morris também conecta noções de interdependência ecológica com ideias anarquistas de não exploração, mas, significativamente, há pouca explicação adicional sobre como o pensamento anarquista poderia gerar atitudes e relações ecológicas concretas, orientadas para o mundo natural. Ao comentar as noções de reciprocidade e ajuda mútua de Kropotkin (ambas derivadas de observações do mundo natural), assim como Kropotkin, Morris se preocupa com sua aplicação em comunidades humanas, e não entre humanos e não humanos. Em termos de sua concretização, não existe uma zona de contato entre a sociedade humana e a não humana.
Sensibilidade ecológica
A ecologia social de Murray Bookchin é uma das vertentes mais proeminentes do pensamento ecoanarquista. A ecologia social defende a remoção da hierarquia da sociedade humana, em parte com base no fato de que a ecologia científica reconhece uma interdependência não hierárquica entre seres vivos e não vivos na natureza. Bookchin (assim como Morris) localiza princípios de interdependência na natureza e os transfere para as interações humanas. Ao fazer isso, ele considera sua vertente do anarquismo ecológico como possuidora de uma “sensibilidade ecológica”. A ecologia social visa principalmente a hierarquia na sociedade humana, pois Bookchin identifica a hierarquia entre os humanos como precursora da dominação humana. Significativamente, Bookchin (1989: 44) considera essa dominação humana como a precursora histórica de nossa dominação da natureza.
Todas as nossas noções de domínio da natureza derivam do domínio muito real do ser humano pelo ser humano… Como uma afirmação histórica, [isto] declara, sem qualquer dúvida, que o domínio do ser humano pelo ser humano precedeu a noção de domínio da natureza.
Nessa interpretação particular da história, Bookchin considera que o primeiro ato de dominação foi o humano-humano. A partir desse ponto de partida, a mentalidade dominadora teria se expandido das relações Homo-Homo para as interações humanas com o mundo natural. Por essa razão, Bookchin prioriza o desmantelamento de todas as formas de hierarquia humano-humano. Portanto, segundo Bookchin, todos os problemas ecológicos seriam resolvidos após uma revolução anarquista. Uma vez estabelecida a posição de não-hierarquia entre os humanos, essa sensibilidade se estenderia naturalmente ao mundo não humano.
A força da afirmação de Bookchin depende da noção de uma sociedade orgânica singular e não hierárquica que existiu antes do surgimento da hierarquia. O argumento de uma sociedade orgânica é sustentado por evidências selecionadas de povos tribais contemporâneos. Para os humanos nessa hipotética sociedade orgânica, “sua perspectiva era distintamente ecológica”, pois eles sustentavam noções de interdependência com o mundo natural; “como parte do mundo natural. Eles não estavam acima da natureza nem abaixo dela, mas dentro dela” (Bookchin 1982, p. 5). Como visto nos escritos de Morris, adotar princípios emprestados do mundo natural é suficiente para afirmar que uma sociedade é ecológica, mesmo que a aplicação desses princípios se restrinja à interação humano-humano.
Contudo, em A Ecologia da Liberdade , Bookchin (1982) comenta brevemente como a interdependência e a inserção no mundo natural eram (ou são) vivenciadas. Bookchin (1982, p. 49) observa que os povos pré-letrados “viviam em uma relação de parentesco” com a natureza, como parte de uma cultura animista na qual humanos e não humanos “são ambos sujeitos – hierarquia e dominação estão totalmente ausentes de sua relação” (Bookchin 1982, p. 98). No entanto, em suas discussões sobre a dominação humana da natureza, Bookchin pouco aborda esses laços de parentesco e a interação interpessoal. Ele apresenta sua sociedade orgânica histórica como fundada em fortes laços de parentesco (entre humanos), com o igualitarismo e a paridade demarcando as relações sociais. Novamente, é essa solidariedade humano-humano, e não a solidariedade humano-natureza, que é importante em um contexto ecológico.
Bookchin destaca a instrumentalização de não humanos como uma ameaça a uma sociedade ecológica, mas não oferece nenhuma maneira de conectar a sociedade humana à sociedade não humana de maneiras não instrumentais. Isso se deve em parte à sua insistência na priorização da hierarquia humano-humano e também à sutil classificação que Bookchin faz do humano como superior ao não humano (Plumwood 1993, p. 15). Em seus escritos, Bookchin (assim como Morris) mantém o humanismo do Iluminismo em sua atitude (‘ecológica’) em relação à natureza não humana. Embora reivindique interdependência com o mundo natural, seus trabalhos anteriores enfatizam a descontinuidade entre a humanidade e o resto da natureza, como nas conhecidas reivindicações de superioridade humana criticadas por Taylor (1981).
Os seres humanos são vastamente diferentes dos outros animais, pois fazem mais do que simplesmente se adaptar ao mundo ao seu redor; eles inovam e criam um novo mundo… Um retorno à mera animalidade – ou deveríamos chamá-la de “descivilização”? – é um retorno não à liberdade, mas ao instinto, ao domínio da “autenticidade” que é guiado mais pelos genes do que pelo cérebro. (Bookchin 1995, p. 47)
Plumwood (1993, p. 15) argumenta que isso “mantém o papel tradicional da razão como base da diferença e identidade humanas e a principal justificativa da superioridade humana sobre a natureza”. Como seres considerados desprovidos de razão, Bookchin considera os não humanos implicitamente inferiores: Bookchin (1982, p. 315) afirma posteriormente que “caluniamos o mundo natural quando negamos sua atividade, esforço, criatividade e desenvolvimento, bem como sua subjetividade”, mas não está claro se isso corrige completamente a superioridade estabelecida do ser humano. Os humanos ainda são considerados os únicos capazes de sociedade, de raciocínio e inteligência. Um problema significativo com isso é que a depreciação da natureza não humana como inconsciente, incapaz de liberdade, cega, passiva e desprovida de faculdades mentais tem sido um fator significativo na instrumentalização, colonização e apropriação do mundo natural pelo ser humano (ver Mathews 1991). No contexto do ecoanarquismo, essa hierarquia antropocêntrica é muito problemática, porque mesmo no nível mais básico, hierarquia e anarquismo não se misturam.
primitivos selvagens e natureza social
Talvez o problema aqui resida na nossa classificação do ecoanarquismo. Em sua recente e perspicaz análise sobre o tema, Mick Smith (2007) considera Morris e Bookchin mais como humanistas ecológicos do que como ecoanarquistas, devido ao seu foco na primazia da razão e na prioridade do ser humano. Smith (2007, p. 472) identifica um anarquismo ecológico mais autêntico nas obras dos autodenominados anarcoprimitivistas que “consideram a ‘civilização’, em todas as suas diversas formas, inerentemente destrutiva para a diversidade biológica e cultural e para as liberdades individuais” e “referem-se positivamente a um passado pré-civilizado que se presume ter existido antes do surgimento de padrões sedentários de agricultura”. Embora as fronteiras entre ecologia social e ecoprimitivismo não sejam tão claramente definidas quanto essa classificação sugere (ver Watson 1998), para os propósitos desta discussão sobre o antropocentrismo, utilizarei a estrutura fornecida por Smith (2007).
Anarcoprimitivistas como John Zerzan e Derrick Jensen consideram a civilização e a ideia de progresso como a raiz de todos os problemas ecológicos. Para combater essas raízes, eles defendem amplamente a seguinte estratégia: primeiro, um retorno a um estilo de vida mais primitivo – inspirado nos estilos de vida de caçadores-coletores “pré-civilização” hipotetizados por Zerzan em seu livro ” Future Primitive” (1994) . Para alcançar esse objetivo, a sociedade industrial precisa ser desmantelada ou, como afirma Jensen (2005), entrará em colapso por si só. O desmantelamento ativo ou passivo consiste na promoção do repovoamento com a natureza (Jensen, 2005). Isso não envolve apenas a remoção de infraestruturas básicas e o ensino de como identificar plantas comestíveis na cidade, mas também o “reconhecimento das experiências com a natureza selvagem como fonte inspiradora da liberdade individual, uma natureza selvagem que rejeita todas as tentativas de impor uma ordem moral ‘civilizadora'” (Smith, 2007, p. 479).
Os anarquistas ecológicos de orientação primitiva valorizam os espaços selvagens. Sua filosofia de renaturalização espelha a empregada por eminentes biólogos da conservação (Donlan et al., 2005), e os anarquistas ecológicos frequentemente participam de iniciativas ativas para a conservação de áreas selvagens. Essa orientação para a preservação da natureza selvagem (lugares ocupados por não humanos, principalmente para fins não humanos) é um dos principais pontos fortes do ecoanarquismo anarco-primitivista e de outras vertentes do ecoanarquismo que promovem a renaturalização. Ao buscar e se deleitar com a natureza selvagem como um antídoto para noções opressivas de civilização e progresso, os primitivistas ecológicos, como Greenbrier (2006), tentam ressituar os humanos como seres sensuais, corpóreos e selvagens. Como humanos, rochas, animais e plantas são considerados seres selvagens interdependentes, parece haver grande potencial nesse ramo do ecoanarquismo.
Contudo, além de o repovoamento da natureza ser talvez uma “inversão acrítica” do status quo (Plumwood 1993), da perspectiva de uma cultura ambiental, ele também ignora, mais uma vez, a zona de encontro entre humanos e o mundo natural não humano. A ideia de natureza selvagem, como princípio exemplar, não se concentra na construção de relações ecológicas que formam a base de uma cultura ambiental (Plumwood 2002, Harvey 2005, Heyd 2007). A natureza selvagem preocupa-se primordialmente com a libertação de humanos e não humanos da domesticação – uma estratégia sustentada pela visão de que civilização-cultura implica dominação e supressão do nosso estado selvagem natural. Para Zerzan (1994), tornar-se selvagem é retornar ao nosso estado natural. Tornar-se selvagem deve, portanto, implicar uma rejeição da cultura-civilização, pois ambas surgiram da domesticação e do cultivo de plantas e animais, ou seja, por meio da dominação da natureza (Zerzan 2002).
Além do problema prático de um mundo sem agricultura que levaria à fome de milhões (Chomsky 2005), existem também problemas filosóficos. A agricultura não precisa necessariamente implicar dominação. Partindo da ideia de Foucault (1988) de dominação como a supressão da resistência, a dominação implica necessariamente o cerceamento e o silenciamento do outro. Se a agricultura pacificasse o mundo natural dessa forma, poderia ser classificada como dominadora. Mas existem muitos exemplos de agricultura em que os domesticadores e os domesticados se envolvem em um diálogo ativo, em vez de um monólogo antropocêntrico de dominação. Em muitas culturas indígenas, que servem de inspiração para os anarcoprimitivistas, a domesticação e a agricultura são praticadas como parcerias em que os parceiros não humanos são vocais, ativos e comunicativos (Descola 1992, Kohák 1997, Rival 2001, Harvey 2005, Hall 2009). Com isso em mente, uma rejeição total da agricultura e da domesticação em favor da vida selvagem é desnecessária, um fato reconhecido por pensadores anarquistas pioneiros como Thoreau.
Um dos principais pontos positivos da defesa da natureza selvagem é a ênfase na inserção dos seres humanos em contato sensorial com os não humanos. Outra vantagem da promoção da natureza selvagem é a defesa implícita do espaço cultural e físico onde esse contato sensorial pode ser vivenciado. Apesar disso, não está claro se a própria natureza selvagem constitui uma estrutura adequada para a interação com os não humanos. Em sua inversão acrítica da civilização, o princípio da natureza selvagem corre o risco de relegar a um segundo plano o aspecto social do mundo natural. Nas sociedades indígenas, que são uma importante fonte de inspiração para os anarcoprimitivistas, os encontros sociais com outros seres não humanos, na modalidade interpessoal, situam humanos e não humanos nas relações que são a base de uma cultura ambiental (Descola 1992, Bird-David 1999, Harvey 2005, Rose 2005). Em muitas culturas, a interação social (entre seres reconhecidos como relacionais e inteligentes) garante que o necessário extermínio de não humanos não descame em hierarquia, corrupção e dominação (Plumwood 1999a, Harvey 2005, Hall 2011).
Nessas culturas indígenas, um mundo natural não humano próspero não é visto ou vivenciado como selvagem, mas como uma rede de relações sociais e éticas (Detwiler 1992, Descola 1992, Rose 1996, Harvey 2005). De fato, na Austrália aborígine, a terra saudável é vista como terra “tranquila” (terra com a qual os humanos ainda mantêm relações ativas de cuidado), enquanto a paisagem erodida e danificada é percebida como “selvagem” (Rose 1996). Assim, a rede de relações sociais não apenas permite que humanos e não humanos prosperem livremente, mas também gera responsabilidade pelo florescimento do outro (Rose 1999, Salmon 2000). Essas responsabilidades ecológicas envolvem os humanos (e sua cultura) ativamente e nos permitem “imaginar dar ao mundo ao nosso redor mais do que o dom de nossa mera ausência” (Visvader 1996, p. 18).
Anarquismo ecológico renovado
Uma alternativa promissora à divisão do ecoanarquismo proposta por Smith em duas vertentes, ecologia social e ecoprimitivismo, é um corpo emergente de literatura ecoanarquista que transcende os dualismos civilização/natureza selvagem e humanos/natureza. Essa produção literária tem sido moldada por diversas influências filosóficas, principalmente a ecologia profunda, a teoria dos direitos dos animais e o ecofeminismo.
A obra de Mark Somma (2006), “Ambientalismo revolucionário: uma introdução”, expõe os princípios da ecologia profunda, conforme formulados por Devall e Sessions (1985), e destaca os desafios lançados pelos ecologistas profundos para reduzir o consumo e promover a “autorrealização”, expandindo nossa consciência humana para que nos identifiquemos com todos os outros seres. Embora critique a ecologia profunda por não oferecer uma alternativa ao capitalismo, Somma (2006) defende a mensagem política da perspectiva biocêntrica da ecologia profunda: a de que a natureza tem valor intrínseco, que a vida não humana possui direitos invioláveis e que a conservação da biodiversidade importa mais do que o consumo. Essa influência da ecologia profunda é compartilhada com outros autores anarquistas, incluindo George Bradford (1989), e é notável porque a valorização explícita de toda a vida na biosfera parece, finalmente, conduzir o ecoanarquismo à zona de contato entre o humano e o não humano. O anarquismo ecológico profundo é empregado por Somma (2006) como justificativa e explicação da solidariedade política entre humanos e a Terra, posta em prática por grupos anarcoativistas como o Earth First!, a Sea Shepherd Conservation Society e a Earth Liberation Front. Contudo, como aponta Plumwood (2002, p. 196), a base ecológica profunda da solidariedade com os não humanos (exemplificada na obra de Arne Naess) é em si problemática.
Para sua análise de solidariedade, Naess recorre a características do eu humano e a conceitos de unidade, identificação e autorrealização para fornecer uma base para a preocupação ativista com a natureza…
Dois problemas com essa abordagem de solidariedade política com seres não humanos decorrem do método de identificação humana com a Terra como um projeto de autorrealização humana. Primeiro, a rede é lançada de forma muito ampla. Identificar nosso eu humano com a Terra inteira não nos permite distinguir entre nossa solidariedade política com minas de carvão e motosserras e nossa solidariedade com pastagens e botões-de-ouro. Além dessa deficiência prática, existem problemas filosóficos na plataforma que sustenta o ecoanarquismo profundo. Um dos principais problemas é que os critérios de inclusão se baseiam na semelhança ou unidade com o humano e dão pouco reconhecimento à independência e à diferença da natureza (Plumwood 2002, p. 197). Por se basear na autoprojeção humana, o ponto de vista ecológico profundo, portanto, retém muitos dos problemas do antropocentrismo e seu dualismo concomitante humano/natureza.
Esse dualismo também é defendido por Stephen Best (2009) em sua obra “Repensando a revolução: libertação total, política de alianças e um prolegômeno aos movimentos de resistência no século XXI”. Os argumentos de Best contra a crueldade animal são apaixonados e necessários na luta para ressituar os não humanos em termos éticos. Novamente, o objetivo da emancipação animal ecoanarquista visa, de forma promissora, reestruturar as relações entre humanos e não humanos. No entanto, Best tenta fazer isso simplesmente estendendo os critérios antropocêntricos de consideração moral aos animais.
O objetivo de Best (2009) é o de “mover o patamar moral da razão e da linguagem para a senciência e a subjetividade” (p. 197). Em suma, os animais merecem consideração moral porque são seres sencientes; seres como os humanos, capazes de sentir dor. Na prática, Best mantém a prioridade do humano (e das preocupações éticas humanas) e simplesmente a amplia um pouco para incluir aqueles que mais se assemelham a nós, humanos: os animais. Em um contexto anarquista, Best (2009: 191) certamente tem razão ao apontar que “embora condene a dominação hierárquica e professe direitos para todos, a esquerda deixa de levar em conta as necessidades e os interesses importantes de bilhões de animais oprimidos”. Contudo, ao se concentrar no “especismo” exclusivamente em relação aos animais, ele segue outros teóricos dos direitos dos animais, como Peter Singer, em sua negligência do reino vegetal ecologicamente dominante, que sustenta toda a vida na biosfera (Hall 2011). Ao incluir os animais no domínio moral, ele exclui firmemente as plantas (e todos os outros seres não humanos) por serem consideradas muito diferentes dos humanos. Elas são o que Peter Singer (1979, p. 92) chama de “uma forma de existência subjetivamente estéril”. Isso não apenas estabelece um dualismo animal/planta, já que as plantas são ecologicamente dominantes, como também reforça o problemático dualismo humano/natureza.
Manter todos esses dualismos antropocêntricos da ecologia social, da ecologia profunda e da teoria dos direitos dos animais é particularmente problemático para a teoria anarquista devido às hierarquias antropocêntricas que perpetuam. Uma virada mais promissora nos escritos ecoanarquistas em geral é a obra de autoras como Patrice Jones, cuja solidariedade política com o mundo natural é enquadrada predominantemente pela teoria ecofeminista. Em particular, as obras de Jones, “Stomping with the elephants: feminist principles for radical solidarity” (2006) e “Free as a bird: natural anarchism in action” (2009), situam plantas, animais e outros não humanos como colaboradores anarquistas ativos, trabalhando ao lado (e não abaixo) dos humanos para deter o colapso dos ecossistemas locais e globais. Jones (2009, p. 238) dissolve habilmente as hierarquias entre humanos e animais ao descrever os animais como “anarquistas naturais, seres sencientes que não reconhecem nem acatam as regras criadas pelos governos”.
Os animais e plantas que Patrice Jones elogia são inteligentes, conscientes e comunicativos. Para Jones, eles devem ser valorizados não por sua utilidade para os seres humanos, nem por sua semelhança com eles, mas porque são nossos parentes próximos, associados e colaboradores valiosos nas atividades do movimento ecoanarquista. De forma semelhante, Solli (2010) descreve a construção de coletivos híbridos de protesto contra projetos de parques eólicos na Noruega. No mundo ativista, Jones (2009, p. 239) deixa claro que esses parentes não humanos não são de forma alguma inferiores aos humanos. Os “anarquistas naturais” não se limitam a falar, eles agem à sua maneira, com seu próprio arsenal de “pés, troncos, dentes e gavinhas”. Em sua autenticidade, audácia e inteligência, os seres humanos têm muito a aprender com seus parentes não humanos.
Ecoando teóricas ecofeministas como Chaone Mallory (2006), Jones (2006, p. 323) argumenta em favor da virtude da empatia por todos os seres não humanos, incluindo as plantas, que, como ela corretamente especula, são ativas, autônomas, intencionais e inteligentes (Trewavas 2005, Hall 2009). Em consonância com o apelo de Plumwood para a ressituação ética dos não humanos, Jones (2006, p. 322) afirma corretamente que a preocupação mais premente do anarquismo ecológico é reverter nosso distanciamento de nossos parentes não humanos: “Devemos reconhecer e cultivar nossos relacionamentos uns com os outros, com outros animais e com os ecossistemas nos quais estamos inseridos”.
Encontrando nossos parentes
Como o colapso dos ecossistemas é sustentado pela autoridade, pela ordem hierárquica, pelo centrismo e pela dominação dos não humanos, os ativistas ecoanarquistas devem se concentrar em aplicar os princípios da anarquia às nossas relações com os não humanos. Além de remover a hierarquia da sociedade humana, devemos removê-la da sociedade ecológica. Fazemos isso não apenas por nossos parentes não humanos, mas também por nós mesmos como seres humanos. Os anarquistas há muito observam que a concentração de poder leva à corrupção. Nesse contexto, a concentração de poder por meio da hierarquia e da centralização leva à corrupção ecológica; não apenas à corrupção dos sistemas ecológicos, mas à distorção da própria humanidade. Como observa Plumwood (2002, p. 98), “Tanto as partes dominantes quanto as subordinadas são deformadas por construções cêntricas, não apenas a vítima óbvia, aquela explorada na relação”. A humanidade é deformada de muitas maneiras por sua ordem hierárquica e dominação dos não humanos. Em nossa corrupção, perdemos a noção de nós mesmos como seres ecológicos, perdemos oportunidades para relações enriquecedoras, dialógicas e corporificadas com os não humanos.
A questão que permanece é: como podemos reverter essa corrupção? Um bom ponto de partida para qualquer anarquista é desmantelar hierarquias e concepções antropocêntricas do mundo. Hierarquias filosóficas que consideram os não humanos inferiores baseiam-se em relatos do mundo que retratam plantas, animais, terra, solo, céu e rochas como insensíveis, passivos e desprovidos de consciência. Como massas inertes e sem direção, seus propósitos são facilmente colonizados pela intenção humana. Em todo o espectro da filosofia ambiental, narrativas que promovem hierarquias foram encontradas nas filosofias platônica, aristotélica e iluminista, bem como em relatos cristãos e neodarwinistas da criação (Hall 2011). O primeiro passo para combater essas ideias é familiarizar-se com uma gama de estudos que demonstram que animais (Bekoff 2002, Noble 2006), plantas (Trewavas 2005, Hall 2009) e até mesmo bactérias (Vertosick 2002) são seres conscientes, volitivos e agentes, com seus próprios propósitos de existência. Anarquistas mais investigativos podem considerar os estudos animistas e panpsíquicos que defendem que tais qualidades de personalidade (Harvey 2005) e consciência (Mathews 2003) também permeiam rochas, ventos e o céu. Para subverter a hierarquia, podemos também refletir sobre a realidade de que os seres humanos são, na verdade, presas de diversas espécies animais, como leões, crocodilos e mosquitos. Um relato vívido dessas relações de caçador-presa envolvendo o ser humano como presa é fornecido por Plumwood (1999b) em seu artigo “Being Prey” (Sendo Presa), um relato de seu ataque por um crocodilo de água salgada no Território do Norte da Austrália. Plumwood (1999b) escreve que “Crocodilos e outras criaturas que podem tirar a vida humana também representam um teste para nossa aceitação de nossa identidade ecológica” – isto é, eles nos desafiam a aceitar nossa posição como parte de uma teia alimentar, em vez de manter nossa posição no topo de uma hierarquia.
Um bom segundo passo é nos afastarmos do domínio da filosofia e adentrarmos o reino do encontro direto, para vivenciarmos a presença da atividade e do propósito não humanos. Como recomenda Patrice Jones, devemos concentrar nossa atenção na natureza ativa de nossos parentes não humanos e nos maravilharmos com sua engenhosidade. Uma única hora dedicada a observar os hábitos alimentares de aves marinhas, a busca por alimento de nossos parentes mamíferos ou plantas ruderais tentando recolonizar áreas industriais degradadas pode ser suficiente para dar início ao processo de desmantelamento. Eventualmente, poderemos seguir Jones (2006, 2009) e Solli (2010) e trabalhar em colaboração com esses atores não humanos em nosso ativismo ambiental.
Embora percepções e comportamentos estejam claramente interligados, “para que as atitudes se tornem definitivas, elas precisam ser cultivadas pela prática” (Grimes 2004, p. 33). Acima de tudo, precisamos da construção e da prática de relações ecologicamente anárquicas para nos conectarmos com o mundo físico das plantas, animais, rochas, fungos, besouros e água. As interações reais, concretas e cotidianas entre humanos e não humanos precisam ser totalmente permeadas pelo espírito da anarquia. Relações anárquicas rejeitam o paradigma mestre-escravo comando-obediência, são descentralizadas (não centradas no humano) e rejeitam a dominação em favor da liberdade.
Abundam os pontos de partida para tais relações. Ronald Grimes (2002) recomenda a ritualização pessoal e espontânea em um contexto ecológico, a fim de participar da experiência não humana com vistas à empatia profunda. A atuação com o objetivo de perder o senso de superioridade humana apresenta uma forma de se comportar de maneira heterárquica com os não humanos e, portanto, oferece um grande potencial anárquico. As ações de uma anarquia ecológica espontânea podem ser pequenas. Talvez o melhor ponto de partida para vivenciar relações anárquicas com os não humanos seja oferecer agradecimentos e reconhecimento significativos e contínuos às outras espécies que morrem para sustentar a vida humana. Em um contexto ritualizado, isso pode assumir a forma de gestos simbólicos, como erguer uma plantação acima da cabeça ou inclinar a cabeça em agradecimento sob a árvore que nos fornece o oxigênio para respirar. Embora seja um ato pequeno e aparentemente insignificante, uma inversão simbólica das hierarquias que colocaram as plantas “abaixo” dos seres humanos nos permite incorporar relações não hierárquicas com os não humanos, em vez de simplesmente falar sobre elas. A repetição consciente desses atos, bem como o diálogo com seres não humanos (uma característica comum nas interações de muitos povos indígenas com o mundo natural), é um caminho para a compreensão do parentesco não hierárquico entre humanos e não humanos.
Pequenos atos como esses abrem caminho para ações pragmáticas maiores, necessárias para descentralizar adequadamente nossa relação com o mundo natural, como a recuperação, conservação e restauração de espaços para plantas, animais e fungos que vivem livremente (ou em estado selvagem). A conservação e a restauração de ecossistemas naturais são cruciais para revogar as relações instrumentais dominantes com o mundo natural, pois envolvem o reconhecimento das necessidades e propósitos de seres não humanos e a priorização desses aspectos. Tais exemplos de solidariedade altruísta abrem a possibilidade de relações contínuas de “não uso”, porque a manutenção desses espaços para seres não humanos (em particular, os espaços recuperados e restaurados) se baseia no profundo envolvimento pessoal dos humanos. O envolvimento altruísta repetido com seres não humanos constrói uma relação de cuidado e responsabilidade, que se assemelha a uma amizade ou a um parentesco entre pessoas. Embora anarquistas como Max Stirner possam rejeitar um apelo à moralidade, situar seres não humanos em relações éticas é um dos métodos mais poderosos para inverter a hierarquia que permeia a ação ecológica humana. É importante ressaltar que essas relações não instrumentais são vitais para corrigir o consumo humano desenfreado de seres não humanos. Ao ceder ativamente mais espaço na Terra para os não humanos, a restauração dos ecossistemas naturais é talvez a maneira mais eficaz de devolver o poder a outras espécies e proporcionar-lhes o espaço necessário para continuarem resistindo à dominação humana.
Agradecimentos
O autor agradece a Alasdair Reid por ajudar a formular a ideia deste artigo, bem como a dois revisores anônimos por seus comentários e sugestões para melhorias em versões anteriores do manuscrito.
Referências
Bakunin, M., 1867. O poder corrompe os melhores. Disponível em: http://dwardmac.pitzer.edu/anarchist_archives/bakunin/bakuninpower.html [Acesso em 15 de novembro de 2008].
Bekoff, M., 2002. Cuidando dos animais: consciência, emoções e coração . Oxford: Oxford University Press.
Best, S., 2009. Repensando a revolução: libertação total, política de alianças e um prolegômeno aos movimentos de resistência no século XXI. In : R. Aster et al., eds. Estudos anarquistas contemporâneos: uma antologia introdutória da anarquia na academia . Nova York: Routledge, 189–202.
Bird-David, N., 1999. Animismo revisitado: personalidade, ambiente e epistemologia relacional. Current Anthropology , 40 (S1), S67–91.
Bookchin, M., 1982. A ecologia da liberdade . Palo Alto, CA: Cheshire Books.
Bookchin, M., 1986. Rumo a uma sociedade ecológica . Montreal: Black Rose Books.
Bookchin, M., 1989. Refazendo a sociedade . Montreal: Black Rose Books.
Bookchin, M., 1995. Anarquismo social ou anarquismo de estilo de vida: um abismo intransponível . Stirling: AK Press.
Bradford, G., 1989. Quão profunda é a ecologia profunda? Edimburgo: AK Press.
Chomsky, N., 2005. Chomsky sobre o anarquismo . Oakland, CA: AK Press.
Crutzen, PJ e Stoermer, EF, 2000. O ‘antropoceno’. Boletim de Mudanças Globais , 41, 17–18.
Descola, P., 1992. Sociedades da natureza e a natureza da sociedade. Em : A. Kuper, ed. Conceituando a sociedade . Londres: Routledge, 107–126.
Detwiler, F., 1992. Todos os meus parentes: pessoas da religião Oglala. Religião , 22(3), 235–246.
Devall, B. e Sessions, G., 1985. Ecologia profunda: viver como se a natureza importasse . Layton, UT: Gibbs M. Smith.
Diamond, JM, 2005. Colapso: como as sociedades escolhem fracassar ou ter sucesso . Londres: Viking.
Donlan, J., et al., 2005. Re-wilding North America. Nature , 436, 913–914.
Foucault, M., 1988. Política, filosofia, cultura: entrevistas e outros escritos , 1977–84. Nova Iorque: Routledge.
Foucault, M., 1990. A história da sexualidade, vol. 1. Londres: Random House.
Goldman, E., 2005. Anarquismo e outros ensaios . Minneapolis, MN: Filiquarian Publishing, LLC.
Greenbrier, T., 2006. Contra a civilização, pela reconexão com a vida. In : S. Best e A.J. Nocella II, eds. Acendendo uma revolução: vozes em defesa da Terra . Edimburgo: AK Press, 198–203.
Grimes, R., 2002. A performance é moeda corrente na economia da dádiva do mundo profundo: uma reflexão encantatória para um espetáculo de medicina global. ISLE: Estudos Interdisciplinares em Literatura e Meio Ambiente , 9, 149–164.
Grimes, R., 2004. Teoria ritual e o ambiente. Sociological Review , 51 (s2), 31–45.
Hall, M., 2009. Autonomia vegetal e ética humano-planta. Ética Ambiental , 31 (2), 169–181.
Hall, M., 2011. Plantas como pessoas: uma botânica filosófica . Nova York: SUNY Press.
Harvey, G., 2005. Animismo: respeitando o mundo vivo . Londres: Hurst & Company.
Heyd, T., 2007. Encontrando a natureza. Rumo a uma cultura ambiental . Aldershot: Ashgate.
IUCN, 2008. Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da IUCN . Gland: IUCN.
Jensen, D., 2005. Fim de jogo: o problema da civilização vol. 1. Nova Iorque: Seven Stories Press.
Jones, P., 2006. Pisando com os elefantes: princípios feministas para a solidariedade radical. In : S. Best e AJ Nocella II, eds. Acendendo uma revolução: vozes em defesa da Terra . Edimburgo: AK Press, 319–334.
Jones, P., 2009. Livre como um pássaro: anarquismo natural em ação. In : R. Aster, et al., eds. Estudos anarquistas contemporâneos: uma antologia introdutória da anarquia na academia . Nova York: Routledge, 236–246.
Koha´ k, E., 1997. Variedades de experiência ecológica. Ética Ambiental , 19 (2), 153–171.
Kropotkin, P., 1890. Sobre a ordem . Disponível em: http://dwardmac.pitzer.edu/anarchist_archives/kropotkin/order.html [Acesso em 12 de dezembro de 2008].
Kropotkin, P., 1902. Ajuda mútua: um fator de evolução . Londres: Heinemann.
Kropotkin, P., 1926. A conquista do pão . Nova Iorque: Vanguard Press.
Kropotkin, P., 1969. O Estado: seu papel histórico . Londres: Freedom Press.
Kropotkin, P., s.d. Direito e autoridade . Londres: William Reeves.
Mallory, C., 2006. Ecofeminismo e defesa florestal em Cascadia: gênero, teoria e ativismo radical. Capitalismo, Natureza, Socialismo , 17 (1), 32–49.
Marshall, P., 2008. Exigindo o impossível: uma história do anarquismo . Londres: Harper Perennial.
Mathews, F., 1991. O eu ecológico . Londres: Routledge.
Mathews, F., 2003. Por amor à matéria: um panpsiquismo contemporâneo . Albany, NY: SUNY Press.
Maximoff, GP, 1953. A filosofia política de Bakunin . Nova Iorque: The Free Press.
Morris, B., 1996. Ecologia e anarquismo . Malvern: Images Publishing.
Noble, D., 2006. A música da vida: biologia além do genoma . Oxford: Oxford University Press.
Plumwood, V., 1993. Feminismo e o domínio da natureza . Londres: Routledge.
Plumwood, V., 1999a. Ética ecológica dos direitos ao reconhecimento: múltiplas esferas de justiça para humanos, animais e natureza. In : N. Low, ed. Ética global e meio ambiente . Londres: Routledge, 188–212.
Plumwood, V., 1999b. Ser presa. Disponível em: http://valplumwood.com/2008/03/08/being-prey/ [Acesso em 1 de janeiro de 2010].
Plumwood, V., 2002. Cultura ambiental: a crise ecológica da razão . Londres: Routledge.
Rival, L., 2001. Semente e clone: o significado simbólico e social do cultivo da mandioca amarga. In : L. Rival e N. Whitehead, eds. Além do visível e do material: a amerindianização da sociedade na obra de Peter Rivière . Oxford: Oxford University Press, 57–80.
Rose, D., 1996. Terras nutritivas: visões aborígenes australianas da paisagem e da natureza selvagem . Canberra: Comissão Australiana do Patrimônio.
Rose, D., 1999. Ecologias indígenas e uma ética de conexão. In : N. Low, ed. Ética global e meio ambiente . Londres: Routledge, 175–187.
Rose, D., 2005. Uma ecologia filosófica indígena: situando o humano. The Australian Journal of Anthropology , 16 (3), 294–305.
Salmon, E., 2000. Ecologia cinecêntrica: percepções indígenas da relação humano-natureza. Ecological Applications , 10 (5), 1327–1332.
Secretariado da Convenção sobre Diversidade Biológica (SCBD), 2002. Estratégia global para a conservação de plantas . Montreal: SCBD.
Singer, P., 1979. Ética prática . Cambridge: Cambridge University Press.
Smith, M., 2007. Vida selvagem: anarquia, ecologia e ética. Política Ambiental , 16 (3), 470–487.
Solli, J., 2010. Onde as águias ousam? Implementando resistência a parques eólicos através de coletivos híbridos. Política Ambiental , 19 (1), 45–60.
Somma, M., 2006. Ambientalismo revolucionário: uma introdução. In : S. Best e AJ Nocella II, eds. Acendendo uma revolução: vozes em defesa da Terra . Edimburgo: AK Press, 37–46.
Stirner, M., 1982. O ego e o seu próprio . Wellington, Nova Zelândia: Rebel Press.
Taylor, P., 1981. A ética do respeito pela natureza. Ética Ambiental , 3, 197–218.
Thomas, CD, et al., 2004. Risco de extinção devido às mudanças climáticas. Nature , 427, 145–148.
Trewavas, AJ, 2005. Plantas verdes como organismos inteligentes. Tendências em Ciências Vegetais , 10 (9), 413–419.
Vertosick, FT, 2002. O gênio interior: descobrindo a inteligência de cada ser vivo . Orlando, FL: Harcourt.
Visvader, J., 1996. Natura naturans. Human Ecology Review , 3 (1), 16–18.
Warren, K., 2000. Filosofia ecofeminista . Lanham, MD: Rowman and Littlefield.
Watson, D., 1998. Ecologia social e o problema da tecnologia. Em : A. Light, ed. Ecologia social após Bookchin . Nova York: Guildford Press, 211–239.
WWF, 2008. Relatório Planeta Vivo ., Gland: WWF – Fundo Mundial para a Natureza.
Zerzan, J., 1994. Futuro primitivo e outros ensaios . Nova Iorque: Autonomedia.
Zerzan, J., 2002. Correndo no vazio: a patologia da civilização . Port Townsend, WA: Feral House.
Título: Além do humano: ampliando o anarquismo ecológico
Autor: Matthew Hall
Tópicos: acadêmico , anarcoprimitivismo , antiespecismo , ética , Mikhail Bakunin , Pëtr Kropotkin , ecologia social , especismo
Data: 17 de maio de 2011
Fonte: Política Ambiental: Volume 20, Edição 3





