Quem não presenciou ou até se envolveu no que vou chamar de disputa de “cicatrizes”, onde cada uma expunha uma situação ruim que vivenciou, onde até pode haver uma real cicatriz no corpo. Por exemplo, uma pessoa tem um arranhão no braço por motivo X, aí uma segunda pessoa diz “Isso não é nada, isso aqui é que é …” e mostra uma cicatriz ainda maior por um motivo Y, onde uma terceira pessoa toda toda, com aquele olhar de “Por favor, pessoas principiantes!” e mostra algo digno do livro dos recordes ocorrido por motivo W e assim segue a conversa com as interjeições e silêncios de cada pessoa ao ouvir a exposição apaixonada de cada caso. Isso acontece em filas, em reuniões de pessoas amigas e familiares, no trabalho … e servem geralmente para as pessoas perceberem, entenderem, saberem e compartilhar um pouco da vida de cada um, ali no final das contas, não é uma competição como parece e sim uma construção de empatia e solidariedade entre as pessoas envolvidas.
Comecei ilustrando com essa pequena narrativa para expor algo que tem ocorrido nos últimos anos entre as pessoas dos mais diversos movimentos sociais e que me traz a sensação de estar diante de uma disputa de “cicatrizes”. Cada pessoa protagonista envolvida da luta X, Y, W, K, Z etc enfatiza essa luta como a mais primordial e importante dentro da miriade de lutas nos movimentos sociais, com suas peculiaridades, assim como numa disputa de “cicatrizes”.
Mas ao contrário de um disputa de “cicatrizes” onde se cria um processo de empatia e solidariedade entre as pessoas envolvidas, a disputa de “cicatrizes” no ambiente dos movimentos sociais tem dispersado e de certa forma criado uma “hierarquização das opressões”, não de uma forma clara como exponho e que você, pessoa leitora poderá negar veementemente que não é desse jeito. Negar o fato não significa que ele não exista. Esse processo classificatório competitivo, até impositivo em muitos casos com as famosas “carteiradas sociais” tipo “você é isso… ou não é aquilo”, “pertence ou não ao grupo Ç ou Z” ou a mais categórica e vejo como o mais cala boca de tudo “não sofreu/sofre isso ou aquilo”, numa nítida ao menos para pessoa que escreve, de “hierarquização” e tem se mostrado danosa a todos os movimentos sociais e causado uma cizânia geral na luta contra a opressão e exploração onde quer que ela esteja conforme os objetivos do anarquismo como proposta emancipatória geral e total de todas as oprimidas e exploradas (seres humanas ou não).
Minha contribuição aqui é motivar as pessoas lutadoras dos mais variados movimentos sociais em buscar a solidariedade e empatia pois isso potencializa a luta emancipadora, se ao menos causar uma reflexão sobre a situação exposta, já é de serventia para causa emancipatória.
Sim, há uma urgência na luta de emancipação, da redução e abolição das opressões e explorações, e que no meu simples entendimento que se há uma necessidade de classificação para fins de união das poucas energias que conseguimos reunir diante da repressão que sofremos; ela se dá em torno da vulnerabilidade ligada a fatalidade absoluta, ou seja, risco imenente de morte por práticas opressivas e exploratórias a que estão submetidas seres humanas ou não. Se levarmos isso em conta, há de priorizarmos a luta pelo fim das violências extremas que atingem de forma direta milhões de seres humanos e não humanos, que morrem simplesmente por serem a ponta da opressão e exploração.
Vidas estão sendo tiradas de forma consciente e de forma arbitrária para a manutenção de um valores morais conservadores das relações de opressão e exploração: patriarcado, machismo, racismo, especismo, meritocracia, autoritarismo, nacionalismo, heteronormatividade, Estado, partido.
Como pessoas anarquistas, buscamos a liberdade, assim, libertárias, não compreendemos e nem compactuamos com a banalização das violência e crimes cometidos diariamente; nem que se num processo revolucionário e emancipatório, se não o for da forma ampla possível, manter relações de opressão e exploração de um determinado grupo sobre outro.
Por fim, a disputa de “cicatrizes” se tem alguma serventia no meio de todos os movimento sociais, é pela sensibilização da luta e a percepção que há uma opressão e exploração geral, da qual as oprimidas e exploradas precisam se unir solidariamente para emancipação total de todas. As poucas vozes de resistência devem repercutir as milhões de vozes que foram silenciadas pela violência da opressão e exploração extrema que nos acomete.
Por dignidade e liberdade, lutamos!