
A pergunta sobre se a sociedade “precisa” do Estado adquire, no âmbito sociológico, um caráter que ultrapassa a esfera normativa da filosofia política. Trata-se, sobretudo, de investigar sob quais condições históricas, estruturais e simbólicas as formas estatais de organização emergiram, se consolidaram e se legitimaram como eixo predominante da coordenação social. A sociologia, ao lidar simultaneamente com processos macroestruturais e microinteracionais, revela que a necessidade do Estado não é um dado universal, mas uma construção contingente que se articula à complexificação das formas de vida coletiva, às dinâmicas de poder e às disputas por hegemonia institucional. Assim, discutir a indispensabilidade do Estado implica analisar sua gênese, suas funções e seus limites à luz de teorias clássicas e contemporâneas.
Sob a tradição clássica, o Estado moderno constitui-se como uma forma de dominação racional-legal, tal como definida por Max Weber. Em seu entendimento, o Estado detém o monopólio legítimo da violência física dentro de um território, o que significa que todas as outras formas de coerção são subordinadas ou proibidas. Esse monopólio não é meramente coercitivo, mas estruturado segundo princípios burocráticos, regulatórios e impessoais, que permitem a coordenação de grandes populações e a administração de recursos materiais e simbólicos em escala. A dominação estatal, para Weber, não é uma contingência arbitrária, mas o resultado de uma racionalização crescente da vida social, na qual formas tradicionais e carismáticas de autoridade cedem espaço a estruturas estáveis, previsíveis e orientadas por normas. Desse modo, a necessidade do Estado estaria ligada ao aumento da diferenciação funcional e à expansão das demandas por controle administrativo.
Émile Durkheim, por sua vez, interpreta o Estado como uma instância representativa da consciência coletiva em sociedades caracterizadas pela solidariedade orgânica. Com o avanço da divisão do trabalho, os laços mecânicos de coesão são substituídos por uma interdependência complexa, que exige instituições capazes de garantir a coesão normativa e a regulação dos conflitos entre grupos especializados. Para Durkheim, o Estado atua como mediador das tensões estruturais, produzindo uma moralidade pública que estabiliza o corpo social. Nessa perspectiva, a necessidade do Estado decorre do aumento da complexidade social e da insuficiência das relações primárias para gerar integração e normatividade.
Em contraposição às interpretações funcionalistas ou racionalistas, tradições críticas como o marxismo enfatizam o Estado como uma forma institucional vinculada às relações de dominação econômica. O Estado não é neutro nem universal: ele materializa interesses de classe, reproduz relações de produção e administra contradições inerentes ao capitalismo. A necessidade do Estado, sob essa ótica, não é técnica, mas política: ele é requerido como operador da reprodução social, garantindo a ordem jurídica e coercitiva necessária à acumulação de capital. Além disso, a sociologia crítica de autores posteriores — Wright, Poulantzas, Offe — argumenta que o Estado opera sob uma “autonomia relativa”: não representa apenas interesses imediatos das classes dominantes, mas ajusta-se para manter a estabilidade sistêmica. Assim, a necessidade do Estado é resultado das tensões entre legitimação social e imperativos econômicos, e não de uma exigência universal da vida em coletividade.
A crítica anarquista e autonomista oferece ainda outra matriz interpretativa. Para essa tradição, o Estado não é necessário, mas contingente e historicamente superável. As formas de hierarquia política são vistas como produtos de processos específicos de centralização, estratificação e monopolização da violência. Estudos antropológicos — seguindo a linhagem de Clastres, Graeber, Scott — demonstram que sociedades complexas podem existir, ao menos potencialmente, sem instituições estatais, utilizando mecanismos alternativos de regulação: assembleias, confederações horizontais, sistemas de reciprocidade, códigos informais e redes de solidariedade. A sociologia anarquista enfatiza que a coerção estatal é frequentemente naturalizada por meio de mecanismos ideológicos e pedagógicos, sendo difícil distinguir necessidade funcional de imposição histórica. Dessa perspectiva, o Estado é menos um requisito da ordem social e mais uma forma de ordenação específica, produto de trajetórias de dominação, guerras, processos tributários e centralização administrativa.
O ponto de inflexão entre as perspectivas reside na questão da escala e da complexidade. Sociedades altamente densas, urbanizadas e tecnologicamente interdependentes demandam, de acordo com teorias sistêmicas como as de Luhmann, níveis elevados de coordenação entre sistemas diferenciados: economia, política, ciência, direito, mídia. Tais sistemas operam com códigos próprios e requerem estruturas que reduzam incertezas, integrem fluxos de informação e administram riscos. Nesse contexto, o Estado aparece como um mecanismo de metacoordenação, capaz de sintetizar demandas conflituosas e impor decisões vinculantes. Por outro lado, a crítica pós-estruturalista — incluindo Foucault, Deleuze e Hardt & Negri — sustenta que o Estado é apenas uma das formas possíveis de governamentalidade; a regulação da vida social pode ser exercida por redes, dispositivos, biopolíticas e modulações de poder que não dependem exclusivamente de estruturas estatais. Assim, a necessidade do Estado se torna ainda mais contestável à medida que formas pós-estatais de organização emergem, ainda que de modo incompleto ou híbrido.
Desse modo, afirmar que a sociedade precisa do Estado não corresponde a uma proposição universal, mas a uma interpretação situada das condições históricas que moldaram a vida social moderna. Em um mundo globalizado, marcado por interdependências massivas, fluxos transnacionais e riscos sistêmicos — sanitários, ambientais, econômicos — o Estado continua desempenhando funções cruciais de regulação, proteção e coordenação. Entretanto, isso não implica sua inevitabilidade ontológica. Modelos descentralizados, formas de democracia radical, redes cooperativas e arranjos comunitários apontam possibilidades de reorganização das relações sociais além da lógica estatal tradicional. A sociologia, portanto, não valida um argumento determinista, mas evidencia as contingências que fizeram do Estado a forma dominante de organização política.
Conclui-se que a necessidade do Estado é, antes de tudo, uma categoria analítica dependente das condições materiais, institucionais e culturais de cada formação social. A tarefa sociológica não é prescrever a existência do Estado, mas compreender o modo como ele se legitima, opera e se transforma. Assim, a investigação sobre sua necessidade deve permanecer aberta, crítica e historicamente sensível, reconhecendo tanto sua eficácia funcional quanto seus potenciais de dominação. Em última instância, a relação entre sociedade e Estado é um campo em permanente disputa, cuja análise exige atenção simultânea às estruturas, práticas e significados que configuram o poder na vida coletiva.
Significando também ter em mente a importância da ação e organização direta das pessoas, de forma a trazer de fato, relações horizontais e de rompimento com o status quo de controle dos grupos sociais dominantes que drenam os recursos do planeta para satisfazerem suas ambições e ganancias.
Na luta, somos dignas e livres!





