
Por Grupo Comunista Anarquista
O Comunismo de Luxo Totalmente Automatizado (CLTA) tem estado em voga ultimamente, especialmente com a publicação do livro homônimo de Aaron Bastani pela editora Verso este ano. Originalmente, era um slogan/meme desenvolvido por pessoas ligadas ao grupo Plan C. Eles começaram a usar a expressão “Luxo para Todos”, que foi reforçada por um Tumblr chamado Luxury Communism. Membros do Plan C viram o slogan “Luxo para Todos” em uma manifestação em Berlim e, a princípio, o adotaram como uma piada irônica, mas depois começaram a levá-lo a sério. Eles acreditam que sua origem está na trilogia de ficção científica Marte Vermelho, de Kim Stanley Robinson, onde uma utopia socialista é estabelecida em Marte, e em A Pattern Language, escrito por três arquitetos, Christopher Alexander, Sara Ishikawa e Murray Silverstein em 1977, que descreve uma utopia semelhante. Temos também o livro escrito pelos professores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, Erik Brynjofflsson e James McAfee, intitulado “A Segunda Era das Máquinas”, que prevê um mundo cada vez mais robotizado, onde o trabalho foi abolido.
A expressão ganhou força entre a geração “woke”, que também parece inspirada pelo Corbynismo. De certa forma, ela recuperou o conceito de comunismo, originalmente mais ou menos reservado aos comunistas anarquistas, antes de ser apropriado como rótulo pelos bolcheviques, com a consequente descredibilização da ideia.
Tanto o Plano C quanto Bastani parecem acreditar que o desenvolvimento da tecnologia sob o capitalismo levará ao fim do trabalho e ao fim do próprio capitalismo. Nesse cenário, o capitalismo de alguma forma auxilia sua própria morte, apontando voluntariamente uma arma para a própria têmpora e puxando o gatilho. A tecnologia, em vez de ser vista atualmente como um instrumento do capitalismo para se promover, é vista como um agente de mudança radical.
Marx também acreditava que os avanços tecnológicos criariam as condições para o comunismo. Bastani argumenta que essa visão era falha, pois o capitalismo precisava atingir um estágio superior que Marx não conseguiu prever. Ele acredita que já atingimos esse estágio superior e o situa no ano de 2008, com a crise financeira que se seguiu.
Assim como outro visionário, Paul Mason, Bastani acredita que o avanço tecnológico levará ao desemprego generalizado. Isso não pode ser resolvido com a criação de novos empregos, que Bastani considera impossíveis de criar. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento tecnológico substituirá a escassez pela abundância, a chamada “oferta extrema” por Bastani. Os capitalistas responderão a isso com escassez artificial, pois a abundância leva à queda dos preços e dos mercados.
Essa nova abundância será facilitada pelo desenvolvimento da tecnologia solar e pela mineração de asteroides! (Bastani afirma: “De forma mais especulativa, a mineração de asteroides — cujas barreiras técnicas estão sendo superadas atualmente — poderia nos fornecer não apenas mais energia do que jamais podemos imaginar, mas também mais ferro, ouro, platina e níquel. A escassez de recursos seria coisa do passado.”)
Ao longo do livro, o conceito de luta de classes raramente é abordado, assim como a natureza e o papel do Estado. A classe trabalhadora não é vista como agente de mudança social e, em vez disso, Bastani vislumbra um cenário que agradaria aos apoiadores de Corbyn no Momentum. Ele acredita que, em nível nacional, a terceirização terminaria imediatamente e indústrias privatizadas, como a ferroviária, retornariam ao Estado, com o setor público eliminando os contratados externos. Em nível local, haveria um “protecionismo municipal”, no qual as organizações do setor público gastariam o máximo possível de seus orçamentos localmente, para manter o dinheiro circulando na economia local. Ele baseia esse cenário no que chama de modelo de Preston, em referência à cidade que implementou um plano semelhante.
Além disso, seriam priorizadas as empresas locais, ou seja, aquelas que operassem a menos de dez quilômetros da localidade, fossem cooperativas de trabalhadores ou oferecessem produtos orgânicos e energia renovável. Os bancos centrais também deixariam de priorizar a baixa inflação e passariam a priorizar o aumento dos salários, a alta produtividade e preços acessíveis de imóveis. Os bancos nacionais de investimento em energia investiriam em energia e habitação sustentáveis, com o objetivo de que, até 2030, as emissões de CO2 dos países mais ricos do mundo caíssem praticamente a zero.
O Estado criaria uma rede de bancos regionais e locais e cooperativas de crédito, com os mesmos objetivos descritos acima. Eles incentivariam o crescimento de empresas de propriedade dos trabalhadores.
Além disso, haveria um sistema de Serviços Básicos Universais (SBU) que forneceria as necessidades básicas da vida — por exemplo, educação, moradia e transporte — gratuitamente a todos no momento do uso. Isso em uma sociedade fortemente dominada pelo Estado.
Não está claro como Bastani imagina a implementação desse plano. Que governo o faria? Não é declarado abertamente, mas subentende-se que seria um governo reformista. Como tal governo chegaria ao poder? Não seria lógico que um governo assim precisasse de apoio em massa (mas veja mais adiante as opiniões de Bastani sobre o engajamento popular)? Quais elementos dentro do Estado e entre a classe capitalista resistiriam a tais desenvolvimentos? Bastani fala vagamente sobre um “partido operário contra o trabalho”, mas não elabora sobre esse partido e qual seria seu papel nessa transformação para uma nova sociedade. E, de fato, não há indicação do que aconteceria após essa economia fortemente estatal, como idealizada por Bastani. Como mencionado anteriormente, a própria classe trabalhadora não teria um papel significativo nessa Admirável Nova Utopia de Bastani. Para nós, o comunismo anarquista, o comunismo libertário, o socialismo liberal, chame-o como quiser, precisa surgir por meio do envolvimento da massa da população. Mas para Bastani, “a maioria das pessoas só consegue ser politicamente ativa por breves períodos de tempo”. Ele usa esse cenário falso para defender o engajamento na “política eleitoral tradicional”.
Infelizmente, o capitalismo SABE lidar com a abundância. Muitos produtos que antes eram caros agora são baratos, como alguns celulares e muitos outros eletrodomésticos, sem falar nas diversas lojas de produtos a um real. O capitalismo se adapta com muita facilidade e, de fato, grandes empresas capitalistas como o Facebook e o Google são gratuitas no momento do uso. Elas obtêm seus lucros de outras maneiras. Toda a história do capitalismo indica que ele pode, repetidas vezes, transformar a escassez em “extrema abundância”.
O capitalismo de fato destruiu muitas indústrias e serviços antigos, mas os substituiu por outros. Certamente, certos setores industriais estão ameaçados, desapareceram ou estão em processo de desaparecimento, principalmente o comércio de rua como o conhecemos, mas o sistema capitalista em si não está ameaçado; ele continua encontrando maneiras de se renovar, como demonstra a ascensão do mercado online. A contínua e implacável erradicação de várias indústrias é parte integrante do sistema capitalista.
Bastani é fascinado pela ideia de “aceleracionismo”, ou seja, a de que “o ritmo da mudança histórica está se acelerando” e que em breve provocará as mudanças que ele prevê. Isso é discutível, visto que vários comentaristas têm observado estagnação econômica e desaceleração tecnológica. Tyler Cowen, por exemplo, postula uma “grande estagnação”. Além disso, podemos contrapor as ideias do decrescimento (decroissance em francês), que estão ganhando força e argumentam fortemente contra a produção pela produção (produtivismo), o que entra em conflito com as ideias ecomodernistas de Bastani e Mason. O aceleracionismo acredita que a tecnologia pode ser usada para fins progressistas, enquanto o decrescimento argumenta que certos tipos de tecnologia precisam ser limitados e devem estar relacionados à disponibilidade de recursos. Alguns ecomodernistas ainda acreditam no uso da energia nuclear, embora Bastani, a seu crédito, rejeite essa ideia.
Bastani está ciente de que será acusado de determinismo tecnológico e admite que “a tecnologia importa, mas as ideias, as relações sociais e a política que a acompanham também importam”. No entanto, ele usa um exemplo infeliz. Ele acredita que o surgimento do veganismo e do vegetarianismo em massa levou ao desenvolvimento da tecnologia sintética. Isso é preocupante por dois motivos: primeiro, ele parece pensar que a demanda determina a oferta, como qualquer teórico comum do capitalismo acredita, em vez da visão oposta dos revolucionários, de que a oferta determina a demanda. As empresas estão produzindo produtos veganos como nunca antes porque podem criar produtos altamente processados para obter lucros substanciais. E, será que realmente queremos comer esses alimentos altamente processados cultivados em tanques, pelos quais Bastani demonstra entusiasmo, quando as evidências apontam que os alimentos processados são perigosos para a saúde? Já foi comprovado que há comida suficiente para alimentar o mundo adequadamente e, se uma sociedade desigual fosse substituída pelo comunismo, seria possível prover para todos e seria desnecessário fabricar esses alimentos sintéticos cultivados em tanques.
Bastani também se mostra entusiasmado com os carros elétricos autônomos neste novo mundo que ele vislumbra. Ele prevê que a eletricidade poderá ser fornecida 100% por fontes renováveis, que abastecerão esses carros. Mas isso ainda não resolve o problema do congestionamento, com as estradas ainda sendo perigosas para crianças, idosos e pessoas com deficiência, e comunidades divididas e prejudicadas por rodovias. Devemos rejeitar essas ideias e, em vez disso, buscar um transporte público gratuito e ecologicamente correto.
Bastani fala sobre a erradicação do trabalho e descreve uma semana de 10 horas. Nós, do movimento anarquista comunista, há muito tempo argumentamos contra a ideia de trabalho, e certamente uma semana de 10 horas seria uma melhoria em relação às 40 horas semanais (e em constante crescimento) que muitos sofrem atualmente. Mas ainda seriam 10 horas semanais do mesmo trabalho insatisfatório e tedioso para muitos. Novamente, quando ele se refere à abolição do trabalho, ele se refere ao trabalho no local de trabalho, enquanto o trabalho de reprodução social e cuidado no lar — cuidar de crianças, pais idosos, deficientes e enfermos, e o trabalho doméstico em geral — realizado principalmente por mulheres, é ignorado, revelando mais uma vez a cegueira de Bastani em relação à opressão de gênero e sua falha em incluí-la em sua “utopia”.
Ele se entusiasma com a possibilidade do sequenciamento genômico erradicar “quase todas as formas de doença” em um futuro próximo, com poucas evidências que o comprovem. Fala de “Cartier para todos, Montblanc para as massas e Chloé para todos”. Mas não são esses bens de prestígio exibidos de forma espetacular pelos ricos justamente por serem caros? E será que realmente os desejamos? Muitos, pressionados pela iminente devastação ambiental, estão se afastando cada vez mais do consumismo diante da limitação dos recursos naturais e dos danos que o capitalismo produtivista causa ao planeta. Decrescimento e sustentabilidade deveriam ser fatores-chave na construção de uma nova sociedade, mas, em vez disso, Bastani fala de um comunismo de luxo que resultaria do aumento da produção.
O que também é perturbador é a vanglória de Bastani sobre a “sobrevivência de sete décadas” da URSS como “uma das grandes conquistas políticas do século passado”, o que o aproxima demais de uma minoria de jovens “progressistas” que passaram a elogiar o stalinismo, como, por exemplo, o grupo Red London.
Bastani ignora as consequências ambientais e sociais dos avanços tecnológicos anteriores sob o capitalismo. Ele acredita que o avanço tecnológico que prevê resolverá os problemas criados por um capitalismo inerentemente destrutivo para o meio ambiente. Mas quem cria e controla essa tecnologia, quem decide como ela será usada?
Lembramos de Bastani do movimento estudantil de 2010, quando frequentava o Royal Holloway College e se autodenominava um comunista libertário. Como muitos de seus associados naquele movimento estudantil específico, ele se aproximou do Corbynismo. De fato, sua organização Novara Media rapidamente se transformou em um motor para a construção do Corbynismo. Em última análise, a visão de Bastani para uma nova sociedade é estreita e monótona. Ela não aborda as opressões de classe, raça e gênero, e falha em conceber planos para sua erradicação. É o governo Attlee de 1945 com novas tecnologias adicionadas. Longe de ser revolucionário, é um programa social-democrata e reformista brando do qual qualquer Corbynista se orgulharia. Chamar isso de comunismo é uma farsa.
E quanto à concepção de FALC (Fronteira de Carreira Autônoma) do Plano C? É preciso reconhecer que eles têm sido críticos do determinismo tecnológico e também estão considerando as ideias de decrescimento, além de estarem cientes da negligência da capacidade de ação da classe trabalhadora na construção dessas utopias tecnológicas. Aparentemente, o conceito de FALC proposto por eles é mais matizado do que o de Bastani e ainda está em desenvolvimento. Aguardamos um aprofundamento de suas ideias sobre o assunto. Contudo, suas ligações com o Corbynismo são motivo de preocupação.
PS
Antes da FALC, houve o Anarquismo Pós-Escassez, desenvolvido por Murray Bookchin. Assim como Bastani, Bookchin fala sobre os aspectos positivos da tecnologia como facilitadora de uma nova sociedade: “As sementes para a destruição da sociedade burguesa estão nos próprios meios que ela emprega para a autopreservação: uma tecnologia da abundância capaz de fornecer, pela primeira vez na história, a base material para a libertação.
Novamente, a pergunta que se impõe é: como essa tecnologia pode se tornar libertadora? Certamente, a visão de Bookchin sobre uma sociedade pós-escassez é muito mais imaginativa e abrangente do que a de Bastani, contrastando fortemente com a utopia estatista, frágil e miserável, de Bastani. Enquanto Bastani ignora o movimento de massas como agente de transformação social, Bookchin o enfatiza.
Título: O que é o comunismo de luxo totalmente automatizado?
Autor: Grupo Comunista Anarquista
Tópicos: anarcocomunismo , resenha de livro
Data: 6 de abril de 2020
Fonte: Revista Virus in the Body Politic da ACG.





