Aaron Bushnell em contexto

Por Margaret Killjoy
Ontem (25/02/2024), um soldado da Força Aérea em serviço ativo chamado Aaron Bushnell se autoimolou em frente à Embaixada de Israel. Suas últimas palavras foram “Palestina Livre”. Dos policiais que atenderam à ocorrência, alguns apontaram armas para ele, enquanto outros tentaram apagar as chamas; a imagem de um policial apontando uma arma para um homem em chamas é a coisa mais americana que já vi.
Em 11 de junho de 1963, um monge budista chamado Thích Quảng Đức ateou fogo ao próprio corpo na Cidade de Ho Chi Minh (na época, Saigon). No Vietnã do Sul, os budistas eram uma maioria oprimida, governada por uma minoria católica — a bandeira budista foi proibida, os católicos foram escolhidos para os melhores empregos e os budistas que protestavam eram assassinados nas ruas ou enviados para campos de concentração.
Então, Thích ateou fogo a si mesmo e queimou calmamente diante de centenas de espectadores em uma via pública. Há um filme sobre isso, e eu não gosto muito de “assistir pessoas morrendo em filme”, mas alguns momentos da história valem a pena serem vistos. Ele não gritou; apenas sentou-se em posição de lótus, envolto em chamas. Depois, os policiais tentaram levar seus restos mortais, mas milhares de manifestantes furiosos o levaram de volta e o cremaram novamente para um funeral digno. Seu coração não queimou. Ele se solidificou no fogo. Hoje, é uma relíquia sagrada. Não tenho explicação para isso.
Outros monges no Vietnã seguiram seu exemplo. No final do ano, a CIA liderou um golpe e derrubou o ditador católico do país. Isso não é “os EUA sendo bons”, veja bem, eles estavam apoiando o babaca desde o início. O sacrifício de Thích é frequentemente creditado como o que derrubou aquele regime.
Dois anos depois, a primeira americana ateou fogo ao próprio corpo em protesto contra a Guerra do Vietnã. Alice Herz era uma judia alemã de 82 anos. Ela tinha visto muita merda. Ela lutou pelo feminismo na Alemanha dos anos 1910, ajudou a instaurar a República de Weimar, fugiu da Alemanha para a França e acabou em um campo de concentração nazista. Sobreviveu. Chegou aos EUA. Morou em Detroit e se tornou unitarista. Então, um dia, ela escreveu uma carta sobre como a Guerra do Vietnã foi horrível, saiu às ruas e ateou fogo ao próprio corpo. Ela não foi a última. No Vietnã do Sul e nos EUA, budistas, quakers e católicos atearam fogo ao próprio corpo em serviço da mesma causa.
Quando um católico de 16 anos chamado Ronald Brazee ateou fogo ao próprio corpo em outubro de 1967, um trabalhador católico chamado Padre Daniel Berrigan escreveu um poema para ele chamado “Na Terra das Crianças Queimadas”.
Ele ainda estava vivo um mês depois,
consegui ter acesso a ele,
senti o cheiro
de carne queimada
e entendi de novo
o que eu tinha visto no Vietnã do Norte,
senti que meus sentidos
tinham sido invadidos de uma nova maneira,
agora eu entendia
o poder da morte no mundo moderno,
eu sabia que devia falar e agir
contra a morte,
porque a morte desse menino
estava sendo multiplicada
mil vezes
A resistência holandesa à ocupação nazista foi caracterizada por uma não violência singular, concentrando-se principalmente em esconder judeus e em atos de sabotagem. Essa não foi necessariamente uma decisão ética ou estratégica, mas sim uma decisão imposta pelas circunstâncias — segundo um combatente da resistência, como o governo holandês mantinha um registro de armas de fogo antes da invasão, os nazistas conseguiram obter essa lista e ir de porta em porta para desarmar a população holandesa.
Mas o que faltava à resistência holandesa em armas de fogo, era compensado pela participação em massa. Cerca de um milhão de pessoas estavam envolvidas em abrigar pessoas, escondê-las, fazer greves ou ajudar aqueles que faziam tais coisas. Os dois grupos mais ativos eram igrejas e organizações comunistas.
Os nazistas responderam com punições coletivas. Os ocupantes cortaram o fornecimento de alimentos dentro dos Países Baixos, bloqueando as estradas entre fazendas e cidades. Toda a população do país passou fome durante o que é chamado de Inverno da Fome de 1944-1945. Entre 18 e 22 mil pessoas morreram de fome. Quatro milhões e meio de pessoas viviam com cerca de 600 calorias por dia cada. Uma geração inteira de crianças nascidas ou vivas na época sofreu de doenças crônicas. Audrey Hepburn cresceu nos Países Baixos Ocupados (e, quando pré-adolescente, apresentou-se em balé para arrecadar fundos para apoiar a resistência). Sua experiência no Inverno da Fome a deixou com doenças crônicas, como anemia.
Caso o paralelo que estou traçando não seja óbvio, Gaza está atualmente sendo privada de água pelo governo israelense.
Notavelmente, e bastante interessante de entender no contexto moderno, o Inverno da Fome persistiu apesar dos esforços de socorro até que as forças aliadas libertaram a Holanda dos fascistas em maio de 1945.
Aaron Bushnell tinha 25 anos quando morreu. Antes de seu ato, ele enviou uma mensagem à mídia: “Hoje, planejo realizar um ato extremo de protesto contra o genocídio do povo palestino.”
Ele postou no Facebook: “Muitos de nós gostamos de nos perguntar: ‘O que eu faria se estivesse vivo durante a escravidão? Ou durante o Sul sob o regime de Jim Crow? Ou durante o apartheid? O que eu faria se meu país estivesse cometendo genocídio?’ A resposta é: você está fazendo isso. Agora mesmo.”
Suas últimas palavras, envoltas em chamas, foram “Palestina Livre”.
Sei que o que impediu o envolvimento dos EUA no Vietnã foi a vitória militar do povo vietnamita contra as forças americanas, combinada com os esforços de ação direta da esquerda americana, que tornaram a guerra mais difícil de executar. Sei que o que pôs fim à ocupação nazista foi a invasão dos Aliados. Sei que o que impediu a escravidão legal nos EUA foi a guerra mais mortal da história do nosso país. Também sei que o que impediu as leis de Jim Crow foi… nada. Nada as impediu, não completamente. O longo, árduo e ingrato trabalho de uma combinação de reforma e ação direta mitigou um pouco seus efeitos.
Não posso dizer que acho que outros devam seguir o exemplo de Aaron. Duvido que ele quisesse que alguém o fizesse. Um ato como esse precisa de atenção, não de imitação. O que podemos seguir é a coragem moral. O que precisamos decidir por nós mesmos é como agir, não se devemos agir ou não. Não tenho respostas para mim, e não tenho respostas para você.
Posso dizer que ele não deve ser esquecido, que ele deve ser lembrado quando nos perguntamos se temos coragem de agir.
Posso também dizer que é preciso um número incrível de pessoas realizando uma variedade incrível de trabalhos para efetuar mudanças. Aquele poeta, o Padre Daniel Berrigan, fez muito mais do que escrever poesia. Ele e outros da esquerda católica invadiram escritórios de recrutamento e queimaram registros, impactando diretamente a capacidade dos EUA de enviar jovens para morrer em uma guerra imperialista. Um grupo de pessoas que vinham de seu movimento (mas eram predominantemente judeus e/ou seculares) invadiram um escritório do FBI e descobriram a espionagem e a perturbação do movimento pela paz sob o nome COINTELPRO.
Uma contracultura vibrante e militante surgiu, afastando os americanos das garras da propaganda conservadora. Eles construíram redes nacionais de apoio mútuo e ajudaram desertores a escapar do país.
Muitos soldados americanos no Vietnã desertaram diretamente, tanto que “fragging” entrou na língua inglesa como um verbo para atirar uma granada em seu comandante.
Quanto ao Inverno da Fome, ele não terminou até que o partido nazista foi extinto pela força das armas, mas seus piores efeitos foram aliviados pela bravura e pelo trabalho ingrato de inúmeras pessoas que improvisaram refeições do nada ou que se organizaram para levar ajuda alimentar através das fronteiras alemãs.
Nos EUA, estamos vendo um movimento crescente de oposição à colaboração do nosso país com o regime genocida de Israel.
É impossível saber se será suficiente. Quando você empilha palha no proverbial camelo, nunca sabe qual palha será a última. Nós simplesmente continuamos empilhando.
E enquanto isso, lembramos de nomes como Aaron Bushnell, Ronald Brazee, Alice Herz e Thích Quảng Đức.
Título: Na Terra das Crianças Queimadas
Legenda: Aaron Bushnell em contexto
Autora: Margaret Killjoy
Tópicos: Aaron Bushnell , morte , militar , protesto
Data: 26 de fevereiro de 2024
Fonte: < https://margaretkilljoy.substack.com/p/in-the-land-of-burning-children >